Aquilo que está sob o véu em “Sr. Loverman”, de Bernardine Evaristo

Sr. Loverman, Bernardine Evaristo

Passar uma vida inteira escondendo quem você verdadeiramente é, não é fácil. É um constante pisar em ovos. É como se um véu estivesse sempre a cobrir o que é real e o que não é. Por mais que se siga os dias em uma aparente normalidade, de tal maneira que, para o mundo afora, não há nada sob o não dito, aquilo que falta à luz sufoca, de tão pesada que é a sua presença. Pode-se tentar escapar, fugir pelas frestas, mas o oculto teima em querer se revelar. Assim, poucos são aqueles que conseguem se aquietar feito um túmulo. A necessidade de se desvelar é dura demais para suportar, fazendo com que muitas pessoas cedam. E é isso que acontece com Barrington Jedidiah Walker, personagem central de Sr. Loverman (Companhia das Letras, tradução de Camila von Holdefer), de Bernardine Evaristo. 

Barry é um homem no alto dos seus setenta e quatro anos. Charmoso, galanteador e sempre muito bem vestido, é alguém que ascendeu na vida. Sua fortuna é fruto dos investimentos imobiliários que fez de maneira sagaz em Londres, na Inglaterra, para onde migrou da Antígua, no Caribe, após ter se casado com Carmel, com quem teve duas filhas. De longe, pareceria uma vida boa, não fossem os arranca-rabos frequentes e a relação cada vez mais próxima da ruína protagonizados por “marido e mulher”. 

Para Carmel, seu marido não tem jeito. Um salafrário mulherengo, certeza. Suas ausências — tanto as tangíveis quanto as intangíveis — era, para ela, prova cabal de que ele havia cedido aos pecados da carne, a desonrando, sendo o responsável pela infelicidade dos dois e seu constante estado de nervos. O que Carmel jamais imaginara é que a verdade poderia ser ainda mais cruel para a sua pessoa. Os segredos de Barry são de outra natureza: a sua amizade com Morris não era para, dentre outras coisas, aproveitar os perigos noturnos, mas sim um ao outro. Um amor proibido.

Sr. Loverman é muito mais do que um romance sobre a homossexualidade no armário. O que Evaristo nos propõe aqui é um exercício imaginativo que se dá a partir das imperfeições do ser. Barry, ainda que seja um homem gay, rejeita essa identidade. E todo o preconceito introjetado em si, reverbera, causando danos não só a si mesmo, mas àqueles ao redor. A despeito de quem é sob o véu que o esconde do mundo, o machismo e a homofobia permeiam suas escolhas e atitudes. E isso é um obstáculo para que ele possa de fato se libertar e se (re)descobrir. Afinal, quem é o verdadeiro Barrington Jedidiah Walker? Aquele que não precisa de desculpas para existir? 

Bernardine Evaristo é uma mestra da escrita. As escolhas narrativas que ela faz para construir a história de Sr. Loverman só dá mais profundidade ao romance. Além da contradição entre quem se é e as opiniões da personagem central, os conflitos e dramas que compõem todo o livro colaboram para que o universo criado pela autora nesta obra seja mais profundo. Os dilemas familiares de Barry vão além daqueles que tem com Carmel; o relacionamento por anos obscuro com Morris não são as mil maravilhas, guardando em si suas atribulações; pensar sobre si mesmo com honestidade, admitindo a possibilidade de ser vulnerável é algo que não vem sem custo. Isso sem se esquecer de questões sociais importantes e caras ao nosso tempo, como os debates raciais, sobre imigração, gentrificação e, claro, sexualidade. E tudo isso se entrelaça e dita os contornos que constituem o romance — assim como algum experimentalismo, como a pontuação irregular e determinados capítulos em versos com a ausência de maiúsculas nos inícios dos períodos (já familiares a quem leu o magnífico Garota, mulher outras, também editado pela Companhia das Letras e traduzido por Camila von Holdefer).

Sr. Loverman é um romance que dosa bem os momentos cheios de cores àqueles  monocromáticos. Ainda assim, é um romance espirituoso. Bernardine Evaristo sabe como fazer um retrato fidedigno da vida enquanto equilibra os altos e baixos inerentes a ela, conseguindo voltar seus olhos tanto para aquilo que é particular quanto para o que é público e, a partir de sua interseção, encontrar o cerne de sua literatura. Não à toa, é uma das grandes autoras contemporâneas.

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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