A imprescindível cápsula do tempo queer em The Queen

Muitas pessoas conhecem a cultura Drag Queen graças a RuPaul’s Drag Race, porém mais de 40 anos antes do famoso programa comandado por RuPaul Charles, fomos apresentados ao soberbo documentário The Queen, lançado em 1968, e dirigido por Frank Simon (que ganhou uma fabulosa restauração em 4k em 2019, sendo relançado em vários países; e em 2020 essa restauração foi lançada em blu-ray pela empresa Kino Lorber). E ainda que toda uma geração tenha conhecido o mundo das Drags Queens, das mulheres trans e dos bailes através do documentário Paris Is Burning, em 1990, muitos ainda tentam argumentar que identidade trans não é nada mais do que um fenômeno atual. Um modismo do século 21. No entanto, percebemos quão errados estão os que pensam que a existência de pessoas trans é algo novo.

The Queen, lançado antes da Revolta de Stonewall (levante que, graças às mulheres trans negras e latinas, deu origem ao movimento LGBTQ), acompanha várias Drag Queens que viajam à Nova Iorque para participar do concurso Miss All-America Camp Beauty, que é uma versão mais humilde — mas não menos glamourizada — do Miss Universo. Ali os participantes são seguidos desde sua chegada na cidade até o momento em que a Drag Queen vencedora, já desmontada (sem estar vestida como uma Drag Queen) aguarda seu trem de volta ao interior — e a imagem em que ela segura sua coroa é particularmente devastadora.

Porém, mais do que o glamour (ou a decadência, dependendo de como analisarmos o amadorismo presente na vida dos participantes) do concurso em si, o que me chamou mais atenção foram as cenas de bastidores antes do desfile. Ali os participantes conversam sobre uma variedade de tópicos, incluindo a aceitação da família, a homofobia do exército americano, identidade sexual, raça, classe, gênero e por último, mas não menos importante, o valor intrínseco que a cirurgia de readequação genital — que na época era simplesmente chamada de mudança de sexo — tem na vida de cada um deles. Vale ressaltar a importância da identidade trans, uma vez que duas das Drag Queens mais tarde acabaram transicionando, se reconhecendo, então, como mulheres trans: Rachel Harlow, a vencedora; e Crystal LaBeija, que terminou em concurso com o segundo lugar. É interessante percebermos que Harlow, que foi considerada por todos como merecedora do segundo lugar é várias vezes enquadrada pelas lentes da câmera atrás de alguém, criando uma rima visual que serve também como premonição do seu destino — ao menos na mente de todos as participantes.Inclusive, LaBeija é a responsável pela discussão a respeito do racismo presente nesse tipo de premiação, ao acusar o júri de dar o prêmio à Harlow por ela ser branca. Não obstante, anos mais tarde LaBeija funda a hoje cultuada e famosa The Royal House of LaBeija, uma casa que recebia e cuidava de jovens gays, queer, drag queens, e mulheres trans que eram expulsas de suas casas. Não é por acaso que Paris is Burning é citado no primeiro parágrafo. O famoso documentário dirigido por Jennie Livingston não existiria se The Queen não tivesse preparado o terreno décadas antes. É importante ressaltar que muitos muitos — sendo bell hooks, talvez o nome mais famoso — acusam Livingston, uma mulher branca, de se apropriar e de fetichizar não só a cultura negra dos bailes Drag mas também sua dor. Inclusive existem vários membros que a criticaram publicamente após o lançamento e sucesso do documentário, uma vez que eles, os reais criadores dos bailes não receberam quase nada por suas aparições no filme.

 

The Queen (legendas com tradução minha)

The Queen é uma pequena joia, uma cápsula do tempo queer que merece ganhar uma edição com legendas em português do blu-ray (ou ao menos do dvd, ou ser lançada em streaming por algum serviço disponível no Brasil), uma vez que, como pudemos perceber, não existe nada mais atual do que os tópicos abordados no filme, e ouso arriscar que não só apenas a identidade trans e o universo dos bailes Drag foram ajudados pelo lançamento do documentário, mas também o próprio movimento LGBTQ.


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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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