Publicado originalmente em 2004, Memória de minhas putas tristes (Record, tradução de Eric Nepomuceno) foi o último romance do escritor colombiano Gabriel Garcia Marquez, que em 1982 foi laureado com o Prêmio Nobel de Literatura. Na obra, Gabo conta a história de um velho cronista e crítico musical que ao chegar em seu nonagésimo ano de vida decide celebrar se dando de presente “uma noite de amor louco com uma adolescente virgem”.
Ao longo do romance, o personagem central e narrador da história rememora episódios de sua vida, sobretudo os sexuais, conforme vamos descobrindo os desdobramentos que se deram a partir da primeira noite com a jovem escolhida para lhe servir, rebatizada por ele como Delgadina. O arranjo foi feito por Rosa Cabarcas, uma cafetina octogenária que sempre avisava a seus clientes quando havia novidades como essa na praça, coisa com a qual o narrador do romance sempre recusou por questões de princípios. Mas como a própria meretriz dizia, “também a moral é uma questão de tempo”, se mostrando com a razão.
Acontece que durante a noite do encontro, a jovem não conseguiu fazer outra coisa que não dormir. O velho, sem coragem de acordá-la nem fazer nada com ela naquele estado, apenas dorme ao seu lado. Ao amanhecer, se vai sem ter tocado um dedo na menina. Porém, como logo iremos saber por meio de suas memórias, o reencontro com Delgadina foi inevitável e ele acaba por se apaixonar.
Memória de minhas putas tristes é um livro muito bem escrito, com passagens poéticas, que vão dos afetos de infância do narrador às situações menos pueris. Um domínio da linguagem que não surpreende devido ao tamanho prestígio do autor, mesmo que esse não seja nem de longe o seu melhor trabalho. Garcia Marquez nos apresenta uma perspectiva da solidão como consequência de uma vida arredia às relações mais profundas. Entretanto, o romance gira em torno de temas delicadíssimos. Afinal, além da prostituição (o narrador se recusava a deitar com quem não fosse pagar), é muito complicado tratar como natural o desejo de um homem no alto dos seus 90 anos por uma virgem de 14. Ainda mais ao ver como isso é tratado de forma prosaica e sem culpa pelos personagens da obra. E pior: sem recorrer a um olhar crítico para tanto. Pelo contrário, o que sobra na história é a romantização.
É difícil não se questionar a respeito das escolhas de Garcia Marquez. E embora o que muitas boas obras fazem é nos provocar, Memória de minhas putas tristes não parece justificar seus movimentos. Entretanto, se faz necessário reafirmar que a arte não precisa de uma função para existir. O gozo estético, como diria Sontag, já basta. Portanto, em Memória de minhas putas tristes há esse incômodo, mas que se for transponível, é possível de se admirar por conta de seus aspectos formais. É inconteste a grandeza de Gabriel Garcia Marquez como escritor. Mas é difícil ser impassível a questões tão sensíveis, mesmo estas sendo narradas de maneira tão galanteadora. Como a sabedoria popular já atesta, só o amor não é suficiente. É bom que também seja dito que nem tudo ele justifica.
4 respostas
Eu quero ler esse livro porque gosto muito do Gabo, mas essa questão aí sem pega, e outras também que notei em outros livros.
Caraaaamba, Neto! Você tem uma escrita toda elegante. Eu fiquei aqui: “eita! Olha as escolhas de palavras nesse texto…” haha’ Isso é um elogio, viu?!
Eu nunca li Gabo, mas tenho muitíssima vontade, por tudo o que falam elogiosamente sobre os livros do autor. Mas, confesso que desde o início da apresentação desse livro, eu fiquei com os dois pés atrás sobre ler. É a mesma coisa de “Lolita”: eu tenho curiosidade de conhecer a narrativa, mas sou completamente contra a romantização de algo tão errado quanto a pedofilia. Enfim…
Obrigado pelas palavras gentis, Lorena. De coração!
Sobre o Gabo, ainda lerei outras obras dele. Mas pessoalmente, acho que não comecei bem. Um amigo disse que ama os livros dele, mas este é justamente o único que ele não gosta. Ainda mais se tratando de seu último romance. A respeito de ‘Lolita’, nunca li, mas sempre ouço dizer (e já ouvi isso de gente que confio) que é um trabalho honesto, de tema difícil, mas que não romantiza nada. Afinal, dá pra tratar qualquer tema na literatura, né? A forma como se faz a coisa é que conta muito. Isto posto, tenho muita curiosidade também. Ainda mais ele sendo uma grande referência de uma grande referência minha, a Zadie Smith.
Um beijo!
Ótima resenha!