É possível dizer sem medo de errar que Cidinha da Silva é uma das grandes escritoras brasileiras contemporâneas. Referência pela qualidade exuberante de suas crônicas, Cidinha também se destaca pela literatura de ficção, como é possível comprovar em seu excelente Um Exu em Nova York (Pallas, 2018), que não à toa foi vencedor do Prêmio Biblioteca Nacional no ano de 2019. Em Oh, margem! Reinventa os rios! (Oficina Raquel) podemos conferir essas duas facetas da autora.
Publicado originalmente em 2011, Oh, margem! Reinventa os rios! foi relançado com dois contos e três crônicas inéditas (apenas “Thriller” havia sido publicado, só que na Alemanha). E a obra nos mostra o quão versátil Cidinha da Silva é. Se em alguns dos textos ela demonstra não ter medo de tocar em temas espinhosos, em outros ela é capaz de levar o leitor para onde este menos espera. E essa diversificação não fica presa apenas aos argumentos de seus contos e crônicas. Cidinha é cuidadosa ao trabalhar a linguagem, se valendo do que for necessário para chegar onde quer com seus textos.
No já citado “Thriller”, conto que abre o livro, Cidinha faz jus ao título com uma narrativa ágil e tensa, nos deixando apreensivos pelo que está por vir. Suas frases são tão pontuais que chegam a machucar. Sobretudo quando as revelações que se seguem começam a tomar forma. O terminamos sem ar. Já no conto seguinte, “Construção”, um tom familiar se apossa do texto. A autora nos coloca dentro de uma realidade conhecida por muitas famílias brasileiras: casa cheia, carrinho de mão para lá e pra cá, cozinha viva, virilidade espetacularizada, cerveja gelada e conversa fiada rolando solta. Como a própria Cidinha escreve, dia de bater laje é dia de festa. E dá para sentir isso em seu conto. Muito pelo bom ritmo que ela impõe a ele. Há algo de divertido ali ao mesmo tempo que ela não fecha os olhos para os problemas tão comuns a tais universos. Um rito brasileiro que a autora não romantiza, mas nem por isso deixa de prestar a devida reverência.
Na crônica “Musashi e Spider”, Cidinha da Silva nos dá uma bela amostra do porquê ser tão celebrada por esse gênero. Já no primeiro parágrafo, Cidinha faz uma excelente analogia entre Anderson Silva, um dos maiores atletas de MMA da história, e Santo Antônio, o santo casamenteiro. É quase impossível não soltar umas gargalhadas. Mas logo depois a analogia se torna mais sóbria, nos forçando a verificar se nossos pés estão mesmo no chão. E de maneira fluida e desapercebida, saí do UFC e vai para uma belíssima declaração de amor às boas histórias. Cidinha nos encanta então ao falar do tanto que se maravilhou ao ler a obra Musashi, de Eiji Yoshikawa. Habilidosa, como um Yasuke das letras, vai abrindo caminho com suas palavras feito katana afiada, nos mostrando que a expectativa é mãe da frustração. Tal qual Anderson Silva e Miyamoto Musashi, Cidinha abaixa a guarda, nos distrai e nos acerta com o golpe perfeito. Coisa de mestre.
Os três textos citados acima estão todos na primeira parte do livro e já dão o tom de muito do que virá pela frente. Cidinha é uma autora atenta e escolhe muito bem quais questões tratar em seus textos. Questões caras a si. É o que vemos quando ela abre diálogo a respeito e com Simonal. Uma conversa franca que só é possível entre amigos e entre iguais. É o que também vemos na breve crônica sobre Evaldo Braga, o ídolo negro da música que o Brasil, para a surpresa de ninguém, esqueceu. Mas não são só de personagens reais de nossa história com quem Cidinha da Silva preenche seu livro. Oh, margem! Reinventa os rios! também é casa de Luli Arrancatelha, criação marcante, lúcida e dona de saberes que academia alguma ensina. Em um conto que mimetiza uma entrevista, Cidinha nos apresenta a história dessa mulher que sabe muito bem o que quer e o que faz da vida, e que por por sua vez, mimetiza muitas figuras reais que não raro são subestimadas por não corresponderem ao que parte da sociedade julga como ideal. Vale também mencionar que nesse conto, de título “Luli Arrancatelha: modelo, manequim e funkeira”, Cidinha presta homenagem à poeta e atriz Maria Tereza Moreira de Jesus, que infelizmente nos deixou muito cedo. Já em “Solidariedade”, temos Poliana, personagem carismática que esquece que na prática, não é toda hora que a teoria dá as caras, nos arrancando mais gargalhadas. E em “São três os meninos da minha rua”, a autora nos mostra com muita elegância como a subalternização de corpos negros nem sempre é capaz de desumanizá-los. Um conto-crônica breve, mas certeiro.
Oh, margem! Reinventa os rios! é dividido em quatro partes. A saber: “Nascente”, “Afluente”, “Leito” e “Foz”. O que faz muito sentido, pois a obra aflora, nos dando pistas de por onde as palavras de Cidinha da Silva irão percorrer; depois vem a segunda parte que é repleta de personagens incríveis e que de uma maneira ou de outra, ajudam a alimentar esse rio que é a vida; a terceira parte é uma pequena coleção de histórias que versam a respeito das possibilidades da vida; e por fim, a última parte, onde tudo deságua, encerrando o livro, mas nos dando a certeza de que esse foz é um oceano, pois a obra de Cidinha, definitivamente, não se esgota aqui. Sua leitura crítica do mundo aliada à sua escrita voraz não só tem muito a nos oferecer como vem fazendo isso há tantos anos. Cidinha da Silva não é respeitada à toa e os textos de Oh, margem! Reinventa os rios! falam por si. E respeitando as devidas proporções, Cidinha da Silva é, assim como Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro, autora importante para entendermos o Brasil de hoje e de amanhã.
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3 respostas
Eita, me sinto honrada e alegre, Arman. Agradeço pela leitura atenta e perspicaz. Aquele jornal perdeu a sua resenha de espadachim.
Beijo e abraço, muito obrigada.