Quando a conversa sincera não é a base de uma relação, pode ser que esta se arruíne ou que uma das partes tente fugir dela. Pode ser que o amor cegue a ponto de um não perceber os pequenos atos que desagrada ao parceiro, que prefere não dizer nada para não magoar, e esse não dizer acumula-se, até que a única saída seja uma fuga disfarçada.
Cartola e Glória são marido e mulher, pais de dois filhos: Justina e Aquiles. Uma família que seria como qualquer outra, não fosse pelo fato de que em decorrência de complicações durante o parto do menino, Glória ficou paralisada em uma cama e o garoto nasceu com má-formação no calcanhar. Os médicos disseram que só teria uma esperança: Aquiles deveria ser operado antes dos quinze anos. A família acompanha o crescimento do menino, até que no ano de seu décimo quinto aniversário, 1985, pai e filho partem para Portugal com o objetivo de fazer a operação que consertaria o calcanhar. Mãe e filha permanecem em Luanda, impossibilitadas por uma condição física e financeira.
Em Lisboa, Cartola e Aquiles são recebidos pela cidade que antes tanto sonharam e imaginaram como seria conhecer. Ficaram hospedados em uma pensão enquanto o dinheiro deu para pagar, chegaram perto de passar fome, mas sempre deu-se um jeito, trabalharam. Mudaram de bairro e de casa, foram morar em Paraíso, bairro pobre de Lisboa. Lá fizeram amigos. Os anos foram passando, pai e filho foram ficando. A perspectiva de volta para Luanda cada vez mais longe. Para Cartola, estar em Lisboa era também uma fuga de um relacionamento que não o fazia completamente feliz. Inseridos nessa nova realidade, precisam lidar com a construção de suas novas identidades, com as mudanças que essa imigração provoca, com o modo como são vistos pelos olhares portugueses e com isso, também com a construção de suas masculinidades.
O livro é ambientado em um contexto histórico no qual Luanda busca independência de Portugal, seguido de uma longa guerra civil. Pela troca de cartas entre marido e mulher é possível ter um panorama das consequências desse período.
Vencida a falta de familiaridade com a linguagem que traz o português de Portugal e expressões linguísticas de Angola, o que confere singularidade à narrativa, a leitura flui como um ônibus desimpedido de trânsito, na escrita poética e direta de Djaimilia Pereira. Não à toa o livro foi ganhador do Prêmio Oceanos e Eça de Queiroz. Luanda, Lisboa, Paraíso é imprevisível em muitos sentidos, previsível em outros, mas surpreendente a cada virar de páginas. Começa como uma busca para salvar a si mesmo, encontrando no outro a salvação. Retrata sem temor os sentimentos que levam ao auge de atitudes drásticas, as ações que são tomadas pelo medo da solidão definitiva.
2 respostas
Que resenha maravilhosa. Sempre bom conhecer novas autoras. Vim lá do insta pra conhecer esse espaço incrível super representativo.
Obrigada por criar conteúdos como este mana ❤️
Leitura densa e única, gostei muito do livro e me despertou para ler mais autores africanos e sobre a história desse grande continente. África. Obrigada pela resenha, Maria! Adorei seu blog! Um beijo, Alessandra