Resenha “Cordilheira”- Daniel Galera

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Por Arsenio Meira

A sensação da Cordilheira 

Esse excelente “Cordilheira” rendeu ao autor Daniel Galera o Prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional de 2008 e o terceiro lugar na categoria romance do Jabuti de 2009. No livro, Galera usa a temporada de um mês em Buenos Aires para desenvolver a história de uma jovem escritora, que, assim como ele, precisa viajar à capital argentina por compromissos profissionais.

Interseções que emprestam a vivência do escritor à personagem, em especial na construção do seu cotidiano de badalada autora contemporânea em meio a convites, negociações e participações em eventos. Esses relatos sobre os bastidores do mercado editorial revelam-se ainda mais curiosos pelo desinteresse da protagonista Anita van der Goltz Vianna em prosseguir com sua carreira literária, o que nos permite enxergar o circuito de feiras literárias pelo viés crítico de uma narradora que já não agüenta tanta mise-en-scène. Convidada para participar da Feira do Livro de Buenos Aires, ela aceita mais por ver na viagem a possibilidade de uma fuga, um recomeço.

Anita parte para a Argentina na intenção de se desvencilhar das dores de uma tragédia ocorrida em seu círculo íntimo e concretizar aquilo que a fez terminar o seu relacionamento, interrompido pelo desejo da narradora em engravidar. E não demora, ela encontra um pretendente. A história então envereda para uma trama romântica. Mas sem flores. Os contornos são sombrios. 

Seu novo companheiro, José Holden, introduz Anita a um círculo de amizades formado por escritores obscuros que se revelam seguidores do guatemalteco Jupiter Irrisari, responsável por lançar, no início do século 20, a ideia de assumir a identidade dos seus personagens na vida.

Enquanto a história se desenvolve e a personagem desvenda o mistério em torno dos seus companheiros, Galera tece um emaranhado de referências literárias, mistura gêneros textuais, combina discursos de ficção com o da crítica e insere trechos de outras obras no romance. Esse recurso, além de enriquecer a história com elementos narrativos e aumentar as camadas ficcionais, também funciona como elemento catalizador dos questionamentos sobre o papel da literatura e sedimenta a fronteira entre o real e a ficção, possibilitando aos leitores vislumbrar caminhos paralelos em relação à idealização dos personagens em comparação com suas vidas.

Ainda que sirvam para revelar alguns dos interesses deste jovem autor que é considerado, com justiça, um dos expoentes da literatura contemporânea, essas reflexões metalinguísticas ganham mais relevância, pois parecem ficar a meio caminho na intenção de imersão dos leitores. Tal como Anita, Galera mantém distância dos seus personagens e pensamentos, apenas apresentando-os e relatando episódios, com o claro intuito de convidar ou obrigar o leitor a uma análise sobre a linguagem literária. A narrativa fica nos fatos, fragmentos de impressões e pensamentos soltos, é certo; mas é capaz de nos fazer sentir a insegurança e as dores da protagonista e a necessidade dos outros personagens em reafirmar suas obras em vida.

Mesmo com a própria protagonista, a relação do autor não guarda uma fronteira. Por se tratar de uma narradora mulher, o escritor consegue se fundir à personalidade de Anita, ele a constrói a partir de uma visão multifacetada. O recurso fica evidente até mesmo na observação da personagem sobre uma camisa azul e amarela, que ela associa a um time de futebol, mas não consegue identificá-la como o uniforme do Boca Juniors. Mulheres, hoje, estão antenadas em todo e qualquer assunto, mormente escritoras. 

A metalinguagem, aqui, foi muitíssimo bem manuseada, através de uma prosa escorreita, límpida, lúcida. E a trama prende o leitor, sem necessidade de explosões, cambalhotas ou piruetas. Apenas a tentativa de alguém empreender a mais difícil viagem: a de olhar-se para dentro, reconhecer a si mesmo e, a partir disso, apreender o sentido vital do verbo conviver.

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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