Escrito por William S. Burroughs entre 1951 e 1953, mas publicado nos Estados Unidos somente em 1985, Queer é um clássico da Geração Beat que conta a história de William Lee, alter ego do autor, e protagonista dos livros Junky, de 1953 e Almoço Nu, de 1959. Lee é um norte-americano expatriado no México que luta contra a abstinência de drogas enquanto vive um romance homossexual fadado ao fracasso com Eugene “Gene” Allerton, um revisor jornalístico indiferente, indeciso e blasé. Escrito de forma frenética — afinal estamos diante de um texto-símbolo da geração beat —, o romance igualmente frenético e alucinado narra a busca de ambos por uma droga chamada yage, que possui efeitos enteógenos e só é encontrada na América do Sul, mais precisamente em algumas aldeias da Amazônia.
Apesar de ser um dos primeiros romances escritos pelo autor, Queer foi um dos últimos a ser publicado. O motivo desse atraso foi o teor explicitamente homossexual, algo que era inconcebível na literatura da época. Curiosamente, durante e após a leitura, o leitor já familiarizado com a obra do autor pode estranhar quão recatado é o livro. Logicamente existem momentos problemáticos, mas a princípio, a homossexualidade per se não é escrita, nem descrita de forma explícita. As relações sexuais entre homens existem, mas não são detalhadas — como nos filmes clássicos hollywoodianos quando uma cena que mostrava um casal (evidentemente cisheteronormativo e branco) se beijando era seguida de um fade out (quando a tela escurece) —, e o autor segue um formato em que escreve que os amantes tiraram as roupas, e salta imediatamente para um pós-coito em que ambos já estão fumando cigarros na cama. O que leva a entender que, na verdade, o livro poderia ter sido publicado em sua data original, apesar da ambientação da história, que formada por um número exorbitante de personagens homossexuais (ou com “tendências” homossexuais, seja lá o que isso signifique em 2021) frequentadores de bares igualmente homossexuais que são comandados por seus donos homossexuais, onde conversas homossexuais acontecem noite adentro.
Transfobia?
Não existe justificativa para a opção de usarem um termo ofensivo às mulheres trans (aquele com a letra T) em um livro publicado em 2017. Com dúvidas, resolvi procurar o original em inglês para saber qual o termo usado pelo autor. Para minha surpresa, ele escreve “transvestite”, um termo já obsoleto que na época significava “crossdresser” (pessoa que gosta de se vestir com roupas designadas para o sexo oposto). Oras, se o termo “transsexual” só foi usado pela primeira vez em 1949, e “transgender” apenas em 1971, fica evidente que o autor estava de fato se referindo a um homem vestido com roupas de mulher (“crossdresser”), e não à uma mulher trans. Logo, não faz nenhum sentido o uso do termo ofensivo em português, principalmente se lembrarmos que no início, na nota sobre a tradução do título, foi decidido que não traduziriam o título para manter uma fidelidade com a linguagem original. Eu me pergunto por que não escolheram simplesmente “crossdresser”, uma vez que era a pessoa que o personagem queria dizer?
William S. Burroughs em Paris. Foto de Brion Gysin
Além da situação citada acima, no romance também podemos encontrar inúmeros comportamentos problemáticos do protagonista. Em determinado momento, o autor indica que William Lee pode ser pedófilo. Adiante, em uma descontraída conversa de bar, William comenta que quando estava em Timbuktu, havia comprado escravos que serviriam de guias, porém nas entrelinhas fica evidente que existia também um tipo de escravidão sexual. Toda a conversa é de causar ânsia de vômito porque ambos, William e o vendedor, tratam o corpo daqueles homens como pedaços de carnes pendurados em açougues a céu aberto. Precisei voltar algumas páginas e conferir em qual época o romance se passa, e para minha surpresa, embora a história se passe em algum ano da década de 60, a época relembrada com assustador saudosismo por William acontecia nos anos 20. Além destes detalhes, é preciso destacar que o protagonista constantemente faz comentários xenofóbicos direcionados às pessoas pobres que vivem nos países onde ele se encontra, além de alternar sua percepção dos corpos negros — às vezes como seres exóticos e hipersexualizados, às vezes como serviçais assexuais.
Mas como podemos simpatizar com um protagonista tão… detestável? Refiz essa mesma pergunta em minha mente diversas vezes durante a leitura. Talvez seja o fato de que até pouco tempo atrás eu me sentia representado na solidão do sujeito, que não conseguia se lembrar de momentos de felicidade porque “Os traumas dolorosos de sua infância tinham obscurecido a memória dos momentos felizes” (p.77). Se mesmo atualmente, com toda a — suposta — inclusão e diversidade, nós, membros de alguma parte da sigla LGBTQIA+ constantemente nos sentimos isolados, sem saber para quem pedir ajuda com nossas questões, nossa falta de amor, nossa falta de apoio familiar, é fácil perceber que para um sujeito secretamente gay na década de 50 era muito mais difícil. Podemos notar como William é relutante em abordar sua orientação sexual durante (ou melhor, antes mesmo do) flerte. Essa vida de solidão — ao menos às claras — é exemplificada de forma exímia já nas primeiras páginas quando William relembra um personagem que ele chama de “um homem envelhecido e simplificado pelo solitário confinamento do amor-próprio exclusivo” [itálico meu] (p. 12). A meu ver, existe um detalhe que torna William Lee ainda mais trágico: o fato de ele talvez sofrer de uma transfobia internalizada. Em uma conversa com Allerton, ele diz que durante muito tempo sentiu medo de ser, na verdade, “uma daquelas falsas mulheres de rosto pintado” (p. 38) e que seria “mais nobre morrer como homem do que levar adiante uma vida de aberração sexual.” (p. 38). No final do dia William é apenas um carente homem branco, magro e cis… que queria ser genuinamente e publicamente amado sem correr o risco de morrer por isso. Para tal ele cria uma performance para todos os seus grupos de amigos, já que o sentimento que ele carrega durante todo o romance é a inveja de quem está resolvido amorosamente.
O apelo do livro está, de fato, em seu estilo caótico de escrita, que muitas vezes lembra as sessões de Bebop — estilo de Jazz historicamente relacionado com a Literatura Beat —, uma vez que tudo é cheio de intensidade, a escrita é compulsiva, os temas abordados são igualmente caóticos, bem como seus personagens, que não sabem como lidar com seus traumas, e por isso escolhem relações fadadas ao fracasso. Existe também um fluxo de pensamento desordenado do autor que interrompe a narrativa no meio de um parágrafo e passa as duas páginas seguintes falando de algo que não é tão relevante para a história (sim, isso é um ponto positivo), e finalmente, os personagens são explorados ao máximo pelo autor, nunca são apenas bonecos sem vida. Todos os personagens, até mesmo os que aparecem por apenas algumas linhas — e que nem nomes possuem — parecem ter sido milimetricamente escritos como parte de um quebra-cabeça que não funcionaria sem eles. Estamos diante uma história fascinante que nos hipnotiza, graças à voracidade do autor e de seus personagens.
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