O ano é de dois mil e dezesseis e uma comissão para discutir os rumos do acesso à universidade pública por meio das cotas raciais fora instaurado pelo governo vigente. O clima no país por conta desse assunto é dos mais exaltados. Alguns alunos estavam indo às vias de fato; alunos negros de pele retinta questionavam a legitimidade de alunos negros de pele mais clara a também terem direito às cotas; e a radicalização de alunos brancos que se diziam associados a grupos de supremacistas também brancos são alguns exemplos do que viera a se tornar realidade desse Brasil narrado por Paulo Scott em Marrom e Amarelo (Alfaguara) e ocasionaram a tomada de tais medidas.
Organizada às pressas, a comissão tem como proposta debater e facilitar a solução defendida pelo governo – a criação de um software que visa analisar fenotipicamente se os candidatos que pleiteiam uma vaga na universidade por meio das cotas raciais podem ser identificados como negros ou não. Dentre aqueles que foram convidados a integrar essa comissão, está Federico. Oriundo de Porto Alegre, graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e ativista preocupado com as questões do negro brasileiro, acredita que, diante do que chama de “acachapante miopia do novo governo”, ser a pessoa adequada para compor um grupo como aquele. A razão para isso (não) é (tão) simples: podendo ser lido socialmente tanto como negro quanto branco devido a tonalidade clara de sua tez e seus fenótipos negróides, Federico se encontra em um não lugar.
Presente em todo o romance, o racismo – e consequentemente, o colorismo – é uma peça imprescindível para a sua construção. Federico é o filho mais velho de uma família negra na qual a consciência racial da mãe sempre fora uma marca presente. Entretanto, mesmo crescendo ciente disso, passou a indagar a sua própria identidade. Diferente do irmão e do pai, ambos retintos, Federico, por conta de sua pele mais clara e cabelo liso, é dono de uma passabilidade que se mostra evidente em alguns momentos da história. Não fosse isso o bastante, ainda tem a sua negritude posta em xeque em situações constrangedoras, como quando presencia amigos do pai se questionarem se os dois possuem mesmo algum laço sanguíneo ou quando é confrontado por um antigo conhecido, que o acusa de se aproveitar de uma luta que, para ele, não o pertence. Em uma complexa busca por autoconhecimento, Federico revira traumas e dores a fim de encontrar um caminho menos tortuoso.
Ao transitar entre o tempo e o espaço, Scott nos apresenta uma trama na qual o seu personagem central se vê diante de diferentes dilemas cujos quais precisa descobrir como lidar. Dos desdobramentos que surgem das reuniões da comissão, passando por um relacionamento mal resolvido, e chegando a uma situação familiar que nada mais é do que a consequência de escolhas que Federico e Lourenço, seu irmão mais novo, tomaram no passado – tudo isso tendo o racismo como plano de fundo. O momento presente do romance é turbulento. As coisas não estão em controle e Federico se sente responsável por tudo o que está acontecendo.
Marrom e Amarelo é uma das reações literárias espontâneas ao Brasil atual. Mirando no racismo estrutural e no colorismo – que é um debate que precisa ser feito com seriedade e tem sido tratado com certa leviandade internet afora –, o romance dialoga com agruras cada vez mais salientes no debate público nacional tal qual a obra de tantos escritores como Cidinha da Silva, Conceição Evaristo, Nei Lopes dentre outros. Scott também lança luz a outra realidade que se tornou costumeira a nossa época, que são os protestos que tomaram as ruas durante toda a década e já se fazem presentes na literatura – Cristovão Tezza, por exemplo, também se valeu deles em seu A Tirania do Amor (Todavia). Em certo momento de Marrom e Amarelo, Federico e Lourenço tentam livrar Roberta, a filha deste segundo, de uma prisão decorrente de uma manifestação popular e que tem caráter persecutório, assim como pudemos testemunhar em diversos episódios da nossa história recente.
Com seu texto que evita rodeios, como alguém que procura ditar algum ritmo enquanto tenta escolher muito bem quando haverá alguma pausa, Paulo Scott traz em Marrom e Amarelo vários problemas que ainda estão emaranhados ao nosso dia a dia. Sejam esses problemas feridas expostas ou suturas mal saradas. Há muitas perguntas feitas e pouca ou nenhuma resposta. E talvez essa nem seja a intenção. Tal como na vida, uma ação vai levando a outra e assim sucessivamente. Por mais que haja expectativas, o que vem a seguir é incerto e nem sempre conclusivo. Por fim, mais uma coisa fica em aberto: até quando as pontas soltas serão suficientes?