Olhar para trás às vezes não é fácil. Embora muitos de nós sejamos donos de uma história da qual nos orgulhamos, cheia de feitos, momentos felizes etc, outros de nós têm linhas mal escritas, e tudo o que gostaríamos era poder apagá-las. E se possível, esquecer que um dia já existiram. Por vezes, são questões até pequenas, mas que nos assombram. Entretanto, há coisas e casos que são incontornáveis. No final das contas, nos resta apenas aprender a lidar com as escolhas feitas, os acontecidos. Ou ao menos tentar. E é em um contexto como esse que O verão tardio (Companhia das Letras), de Luiz Ruffato, ocorre.
O romance acompanha a volta de Oséias ao passado. Passado esse que primeiro se materializa em Cataguases, Minas Gerais, cidade onde cresceu antes de se mudar para São Paulo. Recém chegado, vive aquele processo de reconhecimento. O que é novo? O que se transformou? O que se mantém? Logo, começa a perceber as fissuras que se formaram ao longo dos vinte anos que estivera longe e a sua ausência não permitiu ter à vista.
Perpassando seis dias, a trama de O verão tardio nos apresenta a um homem de meia idade que de cara percebemos não estar nada bem. Seu retorno à cidade natal parece ser em busca de algo que não se mostra acessível. Algo esse, perdido ou fora do lugar, mas que ele carece. No primeiro dia, após relutar um pouco, Oséias bate à porta da irmã, uma diretora escolar que ascendeu socialmente junto ao marido – esse, suspeito de se utilizar de meios escusos para ganhar a vida e com quem Oséias não se dá. A irmã não está, mas sua sobrinha, até então irreconhecível, o recebe aparentando uma empolgação talvez forçada. Este é apenas o primeiro dos encontros e desencontros que o protagonista vivenciará em sua estadia. Assim que se sente mais à vontade, também vai atrás dos outros irmãos vivos – uma, evangélica que luta para tentar se manter em meio à pobreza; o outro, um empresário de sucesso que casou com uma mulher endinheirada e portanto, enriqueceu. Ninguém fala com ninguém. Assim como Oséias não via nem um deles desde o falecimento da mãe – fato que levou à fragmentação da família, que se já mostrava desarmonizada.
Enquanto vaga pela cidade, Oséias recapitula sua vida até ali, assim como tenta fazer uma leitura do presente. Abandonado pela esposa, sem se entender com o filho, desempregado… Seus devaneios se alternam com os reencontros que a vida aparenta estar improvisando para ele. Oséias se deixa levar ao mesmo tempo que se redescobre ao seguir na jornada que propôs a si mesmo. Sem nunca deixar de observar a tudo e todos.
Em O verão tardio, Ruffato nos entrega uma história onde podemos enxergar uma família cindida. Não por enormes acontecimentos, mas sim por conta de pequenas escolhas, por vezes egóicas. Apesar do vazio, seus personagens parecem querer repelir o outro. Ou apenas manter alguma distância. As suas relações são mal sustentadas e um tanto quanto rasas. Quiçá até mecânicas. Difícil não fazer um paralelo com o Brasil atual. E se há algum tempo o diálogo entre o seu povo já sofria com ruídos e sentimentos tempestuosos, após as eleições de dois mil e dezoito se tornou completamente desgastado; vira e mexe impraticável. No entanto, no romance é a faceta mais sutil dessa realidade que dá as caras. Nele, os personagens apenas deixaram de estar uns com os outros. Mesmo que estejam dividindo o mesmo espaço. E é essa dispersão que faz com que cada um se isole. Tal como na vida, onde as bolhas nas quais só se convivem entre iguais se prestam como ambientes onde o desconforto não se faz presente. Mesmo que o preço pago para isso seja viver em estado permanente de apatia e/ou alienação. Em O verão tardio temos no seio familiar uma micro representação do que tem acontecido no macro, a nossa sociedade. Relações frágeis que levam à anulação – e que podem até mesmo levar à destruição – de uns aos outros por conta da inabilidade que se criou entre nós para manter o diálogo e a convivência com aquilo com que não nos identificamos. E isso tudo girando em torno de um homem desorientado e que tenta encontrar uma maneira de lidar com as próprias ruínas.