Em Aos meus homens, soberbo livro de poesias publicado em 2021 pela editora Malê, Marcelo Ricardo faz um belo, tocante e importantíssimo trabalho sobre o negro gay afeminado no Brasil. Mais do que colocar o coração em suas palavras, Marcelo direciona seu olhar aos tipos de comportamentos e masculinidades que são despejadas — quase sempre sem permissão — nos jovens negros brasileiros enquanto, através de poemas singelos, ainda que muitas vezes alarmantes, analisa temas como a objetificação do corpo negro masculino, paternidade, ancestralidade e relações amorosas na era dos aplicativos de encontro, além de subverter a ideia social e sexualmente negativa já pré-concebida acerca do homem negro no imaginário popular.
Sem preparar o terreno — sendo “terreno”, este texto — irei usar como gancho o olhar erotizador do homem branco ao analisar uma referência ao fotógrafo Robert Mapplethorpe. Mapplethorpe foi um fotógrafo mundialmente conhecido, e uma de suas obras mais famosas — também mais criticada — é o livro The Black Book, que por sua vez, foi o resultado da exibição Black Males. O fotógrafo tinha uma visão erotizada e falocentricamente estereotipada do homem negro — sempre grande, potente, pronto para satisfazer os desejos dos brancos —, chegando, inclusive, a misturar os dois imaginários referentes ao homem negro (hipersexualizado e violento) na sociedade norte-americana com a fotografia “Cock and Gun” [Pinto e Arma, tradução nossa] em que um homem negro segura um revólver acima de seu pênis ereto.
É interessante, também, como o autor escreve no poema apropriadamente intitulado Aquendado: “pintei como um menino num lugar de mulher/e sai salpicado dos pormenores do gênero” (p. 29), um poema sobre fluidez de gênero e fashionismos que só são aceitos quando performados por corpos brancos magros, pois como sabemos, ao homem negro não é cedido o lugar em grandes campanhas e revistas, muito menos de experimentar suas facetas, suas vontades e sua sexualidade. Esse tema aparece de forma recorrente na coleção de poemas como um todo.
Em “Feiticeiro”, Marcelo conta a história universal de meninos negros que crescem privados da importantíssima informação acerca de sua beleza, sem saber quão lindos são, e que sistematicamente acabam se acostumando a serem tratados apenas como pedaços de carne, expostos nas fileiras de arquivos JPG de aplicativos de pegação. Existe também um olhar direcionado ao consentimento e como os homens, por incrível que pareça, ainda insistem em argumentar, ou, na maioria esmagadora das vezes, culpar a mulher que ousa dizer não.
O tabu da homossexualidade dentro do futebol brasileiro é abordado, ainda que de forma indireta, em “Aos meninos”, um poema que ao menos a priori mescla sentimentos sobre um possível primeiro amor, jazz e o supracitado futebol, mas que de forma mais profunda levanta questões sobre a equívoca e costumeiramente estereotipada prática de relacionar o homem negro com o ato sexual de forma mais violenta e selvagem.
É preciso apontar o talento do autor ao brincar com palavras parecidas, como em “Manga”, quando ele escreve: “você sempre diz que iríamos além/além do alento/lentamente/na lente do que não via” (p. 59), ao mesmo tempo em que busca inspirações em Lisístrata e Oxum para narrar uma possível realidade comandada por um poder feminino não apenas cisgênero, como no poema intitulado “Das mães dos homens”.
Em última análise, um dos momentos mais tocantes de Aos meus homens acontece não em um poema, mas em um texto chamado “A gente que ama o homem preto”, que funciona como uma espécie de transição entre alguns poemas. Ali o autor escreve sobre o drama diário de uma grande parte da população: mães, pais, parentes e pessoas próximas de pessoas negras que se separam pela manhã sem saber se irão de fato se reencontrar no final do dia, tudo por culpa do racismo do Estado e seu esquema, simbolizado pelo seu Robocop que é frio e não sente pena.
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