Oswaldo de Camargo é um dos grandes intelectuais brasileiros que carecem de mais atenção por parte do grande público. Célebre militante do movimento negro, Camargo ostenta uma produção riquíssima como escritor e crítico literário. Sem contar que, junto ao Cuti e outros escritores, é um dos fundadores dos Cadernos Negros, importante publicação literária brasileira que tem como foco a literatura produzida por autores negros – e que a essa altura do campeonato já deveria dispensar apresentações. Publicado pela primeira vez em 1972 pela editora Livraria Martins, O carro do êxito é um livro de contos que em 2021 ganha uma caprichada edição pela Companhia das Letras com prefácio de Mário Augusto Medeiros da Silva e ilustrações do brilhante Marcelo D’Salete, autor de Angola Janga, Cumbe e Encruzilhada (todos publicados pela editora Veneta).
David Brookshaw comenta em seu Raça e cor na literatura brasileira (1983) que “O carro do êxito poderia ser considerado o primeiro exemplo de literatura baseada na vida urbana negra, uma literatura que o próprio Camargo teria denominado de ‘regionalismo urbano negro’”. E de fato, a vida na cidade entre as décadas de 30 e 70 é uma constante nos contos presentes no livro, sendo marca influente nas construções de suas narrativas. Seja num cenário com mais cara de interior ou pelas ruas da metrópole, os espaços físicos têm muita importância para as histórias de O carro do êxito, seja pelos contextos, seja para dar outra dimensão às travessias, metafóricas ou não, cujos personagens de Camargo por vezes estão sujeitos.
Uma coisa interessante a respeito dos contos presentes no livro é que o próprio Camargo faz questão de escrever uma nota para dizer que há neles “ingredientes que caracterizam o que vem sendo chamado de autoficção”, e por isso, lista onde e quando no tempo os contos se sucedem. É uma escolha curiosa, que traz para a economia da obra informações que talvez não fossem possíveis de se obter de outra forma. E isso acaba por também influenciar a leitura, fazendo que por vezes o leitor pense que talvez personagens como Paulinho ou o Lírio da Conceição, recorrentes nos contos, sejam uma espécie de alter ego do autor. Sobretudo quando algumas características de seus personagens dialogam com atividades do mesmo, como seu talento para a música, o seu ofício como jornalista e também pela sua preocupação com as questões raciais.
O carro do êxito nos põem diante de um grande contista que se preocupa tanto com a qualidade de sua escrita quanto com os meandros das histórias que busca compor. E um dos pontos fortes da obra está na preocupação que Camargo tem de respeitar e se valer de signos negros nas tramas de seus contos. Essa valorização nos brinda com representações de aspectos culturais das épocas cujos contos se situam, lançando luz sobre elementos tão caros à história do negro brasileiro, ajudando a imortalizá-los – aqui por meio da ficção, ou autoficção, como Camargo parece preferir.
Com histórias que buscam uma rota diferente e, portanto, original, O carro do êxito consegue manter o frescor mesmo 49 anos depois de sua primeira publicação. E como bem afirma Jeferson Tenório, “Camargo eleva suas personagens às experiências existenciais poucas vezes vistas na literatura nacional”, o que nos permite atestar a sua qualidade. A imaginação literária de Oswaldo de Camargo aliada às experiências que o autor soube verter para a sua literatura faz de O carro do êxito um dos grandes títulos do conto brasileiro e que merece ser tratado como tal. Um trabalho exuberante que nos convida a um passeio demorado e atencioso pelos caminhos que ele nos abre. Não nos resta outra opção que não seja seguir por ele. Agradeçamos.
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