Texto por William Alves
Certa vez, meu começo de noite se abria como um mar de possibilidades positivas. Devaneios que até então eram apenas sonhos longínquos começavam a ganhar uma forma mais concreta, ainda que nas horas anteriores um terror tenha armado acampamento em meus sentidos. Com a ansiedade já distante, aquela noite ficara no passado, e ao encostar minha cabeça no travesseiro me sentia um novo ser: repleto de planos futuros que sem dúvida alguma se concretizariam logo, já que aquela seria a primeira noite em que eu dormiria sem o peso na consciência que me perseguia há tanto tempo. Era um sentimento estranho, ainda que positivo, de certa forma: eu sonhava com a possibilidade de conseguir sonhar que estava realizando o sonho de finalmente ser feliz. Então, qual a razão para naquela noite ter um dos piores sonhos de toda a minha vida?
Acordei no meio da madrugada, ofegante, suado, assustado e com a respiração prestes a me abandonar. Fiquei imóvel por intermináveis 10 minutos, meu colchão ensopava a cada tentativa de recobrar os sentidos. Em choque, tentei em vão entender o motivo daquele sonho tão perturbador. Seria aquele sonho a premonição de algo? Talvez algo que já acontecera comigo na infância e que por alguma razão havia sido enterrado no fundo de minha memória por uma vida inteira? Pior: eu teria que confrontar as pessoas envolvidas no tal sonho? Exigir uma explicação, não do sonho em si, mas das atividades que aconteceram dentro deste? No dia seguinte me fiscalizei de todas as formas para esquecer o episódio e tentar interagir normalmente com todos os personagens daquele sonho de terror psicológico. Uma coisa, entretanto, não mudou: passei quase uma semana lutando contra um impulso de confrontar as pessoas lá inseridas. De alguma forma eu entendi aquilo como um aviso, e precisava tomar uma decisão drástica para possivelmente salvar vidas inocentes de um trauma futuro.
Então, para minha surpresa, sonhos, seus significados, e como proceder futuramente era o primeiro assunto abordado por Foucault no primeiro capítulo do livro História da sexualidade: O Cuidado de Si. A partir de “A Chave dos Sonhos”, de Artemidoro, o autor analisa uma série de sonhos e seus possíveis significados, e nos esclarece que a conduta moral de cada um de nós pode interferir no teor dos nossos sonhos. Devemos usar nossa moral enquanto sonhador para desenvolver uma análise e entender as interpretações, traduzir analogias que derivarão do corpo, da alma e de tabus: em certo momento ele explica por que um pai sonharia estar fazendo sexo com o próprio filho, e como isso se traduziria em algo ruim na vida real (não pelo incesto em si, mas porque, segundo Artemidoro, o ato de depositar seu esperma em seu filho homem é um ato inútil, já que nenhuma vida será gerada. Logo, o sonho só poderia significar uma futura perda enorme de dinheiro.
Curiosamente, de acordo com Artemidoro, o incesto entre mãe e filho é visto como algo positivo no contexto dos sonhos. Já sonhos sexuais entre mulheres (mãe e filhas, no caso) é sempre visto como antinatural na vida real, uma vez que, ao utilizar um objeto para possuir outra, essa mulher estaria tornando-se odiosamente abusiva pelo fato de plagiar a virilidade do homem ao penetrar outra mulher. Ironicamente, o sonho homossexual entre dois homens não é entendido como a premonição de algo negativo na vida real, e isso se dá pelo fato da virilidade e o ato da penetração serem considerados naturais. Ora, fica impossível não perceber uma discrepância nessas interpretações: o sonho sexual entre pai e filho (maior de idade, no exemplo citado) não gera vida, logo é traduzido como ruína financeira na vida real, mas ao sonho entre dois homens é entendido como algo positivo?
De certo modo, os sonhos sexuais precisam ser entendidos como um presságio em nossas vidas sociais. Ele anuncia o bom e o mau em nossas escolhas sociais, familiares e profissionais.
No capítulo “A Cultura de Si”, notamos que o autor é repetitivo, assim como foi no livro anterior, História da sexualidade: O Uso dos Prazeres. Foulcault explica que de certa forma, a Cultura de Si é, na verdade, uma versão “atualizada” do conceito do “Cuidado de Si”, que já havia sido explorado exaustivamente no volume anterior, assim como os Aphrodisia, a sua vigilância consigo mesmo e sua obstinação ao ocupar-se com a própria alma. É importante ressaltar que a ideia por trás do cuidado consigo mesmo não é a solidão, mas sim a prática social com sabedoria. É dar valor e tempo a quem (ou o que) realmente merece (interpretação minha), já que muitas vezes confundimos, ou somos levados a interpretar o bem pelo mal, a paixão pela amizade, etc. Cirúrgico, Epictero diz: “…essas precauções que tomamos de bom grado quando se trata de dinheiro, nós as neglicenciamos quando se trata de nossa alma.” (p. 81).
“Assim, surge um ser composto muito estranho. Imaginativamente, ela é da mais alta importância; na prática, é completamente insignificante. Permeia a poesia de uma ponta a outra; está quase ausente da história. Domina a vida de reis e conquistadores na ficção; na realidade, é escrava de qualquer rapaz cujos pais lhe enfiem um anel no dedo. Algumas das palavras mais inspiradas, alguns dos pensamentos mais profundos na literatura saem dos seus lábios; na vida real, ela mal sabia ler, mal sabia escrever e era propriedade do marido.” – Um quarto todo seu, Virginia Woolf, p. 60, (tradução: Denise Bottmann).
O foco principal do capítulo “Eu e os Outros” é a união matrimonial, suas mudanças políticas, e também uma nova redistribuição dos papéis político-sociais da mulher e do marido, em comparação com o período clássico. O adultério, por exemplo, passa também a condenar o homem, desde que a traição não seja com a esposa de outro homem. Ou seja: o homem só era impedido de trair sua esposa se sua traição afetasse o status social de outro homem. Essa lei completamente parcial é chamada de Lei de Adulteris.
De forma minúscula, no período helenístico a mulher passa a ganhar alguns direitos: recusar um pedido de casamento, e em caso de separação pode até mesmo recuperar parte da herança. O casamento começa a ser tratado como um contrato entre duas pessoas. Aos poucos, a ideia de que uma mulher precisaria ser “dada” pelo pai para o marido passa a desaparecer, assim como o conceito de “marido e dona de casa” começa a ser chamado “dono e dona da casa”. Em teoria, o homem passa a respeitar sua mulher como ser humano, e não como objeto. Digo em teoria porque, não obstante, somos apresentados ao conceito extremamente machista de que a mulher deve perdoar o homem em caso de adultério, já que de acordo com Plutarco, fica claro que a intenção era (e ainda é) fazer com que a mulher pare de se enxergar como sujeito e passe a aceitar-se enquanto objeto sem de amor próprio.
Em caso de adultério por parte do marido a mulher era indicada a perdoar a infidelidade, porque (a justificativa dada já naquela época era uma das mais conhecidas na sociedade atual) o marido, na verdade, busca a traição porque o amor que ele sente para com a esposa é tão poderoso que ele prefere buscar uma profissional do sexo (ou um rapaz) para não contaminar a esposa com sua devassidão, já que ao iniciar a própria esposa em prazeres demasiadamente fora do padrão, corria-se o risco de lhe ensinar algo que ela faria mau uso, e em relação às quais se arrependeria pelo ensinamento.
Podemos observar que a sexualidade da mulher, assim como sua existência enquanto ser multidimensional era constantemente negada. Mesmo no contexto dos sonhos e do incesto a relação entre duas mulheres era vista de modo tão negativo que era comparada com a bestialidade. Ou seja: de qualquer ângulo que estudarmos a mulher, encontraremos apenas opressão.
Mais adiante, Foucault aborda dois temas curiosos: a ideia por trás do ato sexual no escuro, durante a noite, e a relação do filósofo com o casamento. A primeira, é claro, tem ligação direta com o Cuidado de Si: de acordo com especialistas, o sexo noturno era indicado porque desse modo os envolvidos não transformariam o ato singelo da procriação em algo vergonhoso, carnal e repleto de “memórias sujas” durante o sono. Em alguns casos, um dos amantes, já enjoado do parceiro, chegava a usar a luz do dia ao seu favor para causar repugnância no outro com seus defeitos, e assim, ficar livre da pressão de “terminar” com os encontros sexuais.
Já sobre o casamento do filósofo nos deparamos com um paradoxo curioso: o filósofo buscava a vida de solteiro porque uma vez casado, o caos das obrigações de marido, pai e provedor da casa atrapalharia suas funções enquanto estudioso da alma, da sabedoria, e dos domínios das paixões. Mas como o casamento era sinônimo de superioridade social, e como o filósofo não era simplesmente um professor “dos assuntos da alma”, a sua solteirice o transformaria em inferior perante aqueles que ele supostamente deveria aconselhar.
Foucault traça uma longa e detalhada reflexão acerca do amor pelos rapazes, como esse tipo de amor foi perdendo força desde a época clássica, até os primeiros séculos da era moderna, culminando com o ódio semeado através do cristianismo, em um capítulo que eu classificaria como perfeito: “Os Rapazes”. Vários pontos importantíssimos serão abordados aqui.
A Lei Scantinia foi criada com o propósito de proteger os filhos “de boa origem” quando eles atingiam idade suficiente para serem considerados como objeto de desejo dos homens. Mas e os jovens escravos? A lei, como podemos esperar, não os protegia. Logo, os homens buscavam em seus escravos mais novos o “amor” que lhes era negado perante a lei.
Alguns dos argumentos que são feitos pelos defensores do amor pelos rapazes são ao mesmo tempo interessantes e risíveis: o amor entre homem e mulher era considerado inferior pelo caráter “artificial” das mulheres; elas eram sempre feias e precisavam de um grande esforço “para enganar” os homens através de uma beleza de mentira, maquiagens, roupas, penteados, tinturas de cabelo, joias e enfeites. Já o amor entre um homem e um rapaz era o mais natural dos sentimentos, pois sua beleza era orgânica, ele não precisaria recorrer a truques baratos de sedução, não precisaria de perfumes artificiais, já que “o suor dos rapazes cheira melhor do que toda a caixa de perfumes de uma mulher”, e principalmente, por tratar-se de um amor não ligado à uma obrigação de reprodução, de perpetuar a espécie, e sim baseado na amizade, do amor puro, em outras palavras: uma relação de amor com a alma do amado, e não com o corpo. A ausência do desejo da beleza física da velhice se tornaria uma bela amizade entre dois homens, ao contrário do amor entre o homem e a mulher, que não tinha nada de extraordinário, uma vez que trata-se apenas de algo “imposto” pela natureza, que é encontrado entre os animais. Ou seja: a relação entre homens e mulheres é excludente de amor.
Todos os argumentos e reflexões escritos por Foucault geram um turbilhão de novos argumentos, pensamentos, reflexões e discussões internas. Isso é, sem dúvidas, essencial para termos uma boa leitura. À cerca da questão sobre qual amor é mais verdadeiro, fico aqui com a sabedoria de Dafne: “Se só olharmos para a verdade, constataremos que a atração pelos rapazes e a atração pelas mulheres procedem de um só e mesmo amor.”
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*Exemplar recebido em parceria com a editora.