O surrealismo presente em “Contos, Fábulas e Aforismos”, de Franz Kafka

Quando o nome de Franz Kafka é citado as pessoas tendem a relacioná-lo à obras como O Processo e A Metamorfose; romances clássicos em que temas como alienação e surrealismo são abordados enquanto seus protagonistas, comumente sofrendo de algum tipo de crise filosófico-existencial, enfrentam situações que mais parecem pesadelos labirínticos, repletos de questões burocráticas que nunca são exatamente explicadas — nem ao protagonista, muito menos ao leitor. Além das obras citadas acima, Kafka também possui vários outros trabalhos, que em sua vasta maioria, foram publicados postumamente, e contra a sua vontade.

Muitos dos temas citados acima estão presentes em Contos, Fábulas e Aforismos — publicado no Brasil pela editora Civilização Brasileira, organizado e traduzido por Ênio Silveira. Contendo ilustrações do próprio Kafka, o livro, como o título autoexplica, é composto por vários contos (uns curtíssimos, outros bastante longos), pequenas fábulas, e muitos aforismos que possuem alguns pontos em comum com a personalidade do próprio Kafka: a dificuldade de manter relacionamentos duradouros, a depressão, e um interminável complexo de culpa.

Após iniciar o livro com uma pequena fábula sobre Prometeu, o autor parte para o conto “Graco, o caçador”, que a meu ver, é sem dúvidas o ponto alto do livro. Com personagens mulheres praticamente inexistentes, e personagens que aparecem diante dos nossos olhos sem nenhuma explicação, e com um detalhismo para a ambientação e criação geográfica do lugar, o conto parece — pelo menos de início — narrar o enterro de um pescador, que após ter seu seu corpo recuperado do mar, participa de uma espécie de procissão começa a ser realizada. Sim, você não leu errado. Estamos diante de um morto que na verdade está vivo. Ou, de um vivo que na verdade está morto. A ordem não importa muito, pois o deslumbre está no modo como Kafka descreve cenários pouco iluminados, repletos de sombras que dançam nas paredes, gerando ao mesmo tempo, uma atmosfera metalinguística de terror e surrealismo. Atmosfera esta que, escrita através de camadas e mais camadas narrativas que vão se abrindo diante dos nossos olhos a cada sentença.

Contando com pitadas de um humor anacrônico que funcionam como uma espécie de escape momentâneo, uma vez que estamos diante de histórias pautadas pelo tom surreal e fantasmagórico, o texto de Kafka nos tira risadas inesperadas, como na pequena fábula, apropriadamente intitulada “Uma fabulazinha”, narrada por um camundongo que sofre de uma terrível crise existencial relacionada a seu mundo, que está “ficando cada vez menor” (p. 37), e que pode resultar em sua morte, visto que ratoeiras imponentes parecem se aproximar de seu pequeno corpo.

Existe um homoerotismo sutil que perambula por toda a obra, principalmente em “O novo causídico”. Sintomaticamente, em um microconto sobre Bucéfalo, cavalo de Alexandre, o Grande, cuja sexualidade é sempre motivo de debate. Kafka encontra espaço para fazer descrições detalhadas das coxas de membros de um tribunal. Prioridades, eu diria. 

Apesar de não ser um especialista na obra de Kafka, me considero um aficionado pela leitura kafkiana, bem como pela influência do autor em outros autores. Logo, fui pego de surpresa pelo conto “Comunicação a uma Academia”. Na narrativa somos apresentados a um ex-macaco que conta sua história de vida diante de intelectuais brancos da Academia. Descobrimos que após ser arrancado de sua selva pelos europeus e transportado em um navio, o macaco se viu preso em seu próprio pesadelo kafkiano. Como única forma de sobrevivência e escapatória, precisou emular os gestos e costumes de seus sequestradores, chegando a se transformar em humano. Existe uma interessante discussão acerca da ideia de liberdade no conto. Segundo o autor, através das palavras de seu protagonista ex-macaco, atual intelectual membro da Academia: “Os seres humanos, a propósito, estão frequentemente iludidos com relação à liberdade.” (p. 73). Funcionando como um círculo vicioso de opressão, a história tem resolução relativamente triste — porém não inesperada —, quando descobrimos que o ex-macaco, agora provavelmente um homem branco e intelectual, mantém em sua casa uma macaca de estimação que, segundo ele, ainda não está completamente treinada, mas que não obstante, em breve completará sua transição de macaca para uma mulher europeia e branca.

Para finalizar, chegamos à seção de aforismos. Aqui o leitor irá se deparar com uma variedade de pequenas frases, citações e pensamentos do autor, daquelas que certamente se encontram em sites como pensador.com, com destaque para uma sub-seção intitulada “Ele”, na qual, ao que tudo indica, o autor está escrevendo sobre si mesmo na terceira pessoa.

Contos, Fábulas e Aforismos é um livro curto, que apesar de não ter a qualidade de obras maiores do autor, é formado por todos os elementos tradicionalmente kafkianos já conhecidos e adorados por seus fãs.


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Uma resposta

  1. Menina, eu não li esse dele ainda, mas fiquei curiosa por riqueza tanto nos assuntos, quanto na forma.
    Eu acho muito legal poder pegar uma obra que não é tão conhecida de um autor famoso e desvendá-la. 🙂

    Amei a resenha!
    um beijo :*

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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