Direção: Steven Soderbergh. Roteiro: David Koepps. Elenco: Zoë Kravitz. Betsy Brantley. Rita Wilson. India de Beaufort. Emily Kuroda e Devin Ratray.
Nota: ★★★★★
Após o pico da pandemia de Covid-19 em Seattle, conhecemos Angela Childs (Zoë Kravitz), uma funcionária de uma empresa chamada Amygdala, cujo principal produto é Kimi, uma espécie de Alexa. Algo suspeito é o fato de que Kimi depende de humanos para funcionar perfeitamente. Em outras palavras: vários funcionários precisam escutar todos os comandos e gravações feitos pelos usuários da Kimi para aperfeiçoarem o produto.
Durante um dia rotineiro, Angela descobre a gravação de um possível assassinato entre os áudios de Kimi. Seu primeiro ato é entrar em contato com seu superior para que este leve o caso à polícia. Ao perceber que o sujeito quer evitar qualquer tipo de problemas, ela decide procurar Natalie, uma executiva do alto escalão na empresa, que por sua vez a aconselha a ir até o escritório e entregar as gravações para, então, entrar em contato com o FBI.
É exatamente neste momento que os problemas começam para Angela. Trabalhando em home-office, e sofrendo de ansiedade e agorafobia devido a um trauma recente, ela simplesmente não consegue sair de dentro de seu apartamento — onde, aliás, grande parte da narrativa acontece. Durante a primeira metade do filme Soderbergh usa e abusa de sua tão conhecida técnica ao elaborar sequências elegantes, às vezes elaboradas e sofisticadas; às vezes simples e eficazes, sempre usando uma trilha sonora apropriada ao suspense que ao mesmo tempo brinca, flerta e homenageia o compositor Bernard Herrmann, mundialmente conhecido por suas icônicas trilhas sonoras nos filmes de Alfred Hitchcock. Por ser um filme sucinto, que não perde tempo com nada que não irá movimentar a trama adiante, o fato de grande parte acontecer dentro de um apartamento não significa que estamos diante de um filme monótono.
Soderbergh flerta também com o conceito “Arma de Chekhov”, ao indicar como a protagonista poderá ou não se salvar. A “Arma de Chekhov” é um conceito dramático criado por Anton Chekhov, que pode ser simplificado pela ideia de que todos os elementos presentes em uma cena ou histórias (principalmente um close-up bem fechado de algum objeto) devem ser relevantes durante a trama. Um exemplo claro: se o diretor resolve dar um close-up em uma tesoura no primeiro ato da narrativa, é praticamente certo que algum personagem irá usar a tal tesoura no terceiro ato. Claro, não sabemos disso na primeira vez que assistimos ao filme, a não ser que estejamos bem atentos a todos os detalhes na tela.
Acima escrevi que Soderbergh homenageia o compositor Hermann, bem como Hitchcock na trilha sonora. Pois bem, o bom humor, o flerte e as homenagens não terminam ali. Filmes como Blow-Up: Depois daquele beijo, de 1966; e Blow Out: um tiro na noite, de 1981 — que por sua vez, já homenageava Blow-Up — são duas obras diretamente homenageadas por Soderbergh, mais precisamente na cena em que Angela descobre o crime através dos áudios de Kimi. É interessante observar que, apesar do diretor não esconder suas influências, em nenhum momento estas passagens soam como forçadas, sendo filmadas de forma orgânica, sem chamar a atenção do espectador para seu virtuosismo enquanto cita — indiretamente — obras como Janela Indiscreta e A conversação.
Soderbergh acerta também no uso do som. Primeiro ao retratar a primeira saída de Angela de seu apartamento com barulhos ensurdecedores que bombardeiam nossos ouvidos, nos fazendo experimentar a mesma sensação da protagonista, visto que o simples ato de girar a chave pelo lado de dentro de sua fechadura é uma missão dolorosa para a jovem; e segundo, no clímax ao abdicar totalmente da trilha sonora, nos deixando apenas o silêncio absoluto que é quebrado somente pela respiração da protagonista e o tilintar de suas chaves ao tentar abrir uma porta em momentos de desespero. O que muda imediatamente nas cenas exteriores são as posições de câmera escolhidas pelo diretor. Se em seu apartamento — seu habitat natural — vemos a ação através de tomadas elegantes e amplas que mostram bastante espaço; nas ruas o diretor usa ângulos estranhos, tortos e descentralizados, além de encurralar a protagonista próximo a paredes e muros, como se a atividade de sair de casa a estivesse sufocando — técnica também utilizada com um pontual plano plongée que esmaga a protagonista em vários moments.
Chama a atenção, também, a freneticidade da narrativa. O momento imediatamente antes do clímax, por exemplo, acontece dentro da empresa Amygdala, através de uma perseguição quase kafkiana, apropriadamente dentro de um enorme galpão repleto corredores, cabos de computadores e servidores — sequência, aliás, que lembra O processo, filme de Orson Welles baseado na obra de Kafka. Já o final do filme tem o apartamento de Angela como locação, onde, ao som acertadíssimo em uma música em particular, nossa heroína precisa novamente lutar por sua vida.
Kimi: Alguém está escutando (disponível na HBO Max) é um belo exercício narrativo que, em apenas 90 minutos — perfeito para quem está com pouco tempo — joga luz em temas como isolamento, confiança e paranoia tecnológica, tão comuns nos últimos dois anos graças à pandemia de Covid-19. Estes aspectos, juntamente com o talento tão conhecido do diretor e de Zoë Kravitz explicam a boa recepção do filme pelo mundo.
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