O que o fracasso, “A fuga das galinhas”, Donna Haraway, performances queer de vanguarda, Michel Foucault, Bob Esponja, Judith Butler, “Monstros S/A”, Nazismo e homossexualidade possuem em comum com ser queer?
Em A arte queer do fracasso, publicado pela Editora Cepe, com tradução de Bhuvi Libanio, Jack Halberstam usa uma série de referências à indústria cinematográfica, mais precisamente à criação de animações infantis da Pixar e Dreamworks, juntamente com os autores e temas citados acima para teorizar sobre o lado bom do fracasso. Para isso ele traça uma linha de pensamento clara: a ideia de sucesso na vida é intrinsecamente ligada ao binarismo heteronormativo norte-americano. Arrisco dizer que o problema é mundial. Ter sucesso na vida está invariavelmente — no caso dos homens, evidentemente — em ter um bom emprego, ser viril, possuir uma mulher e construir uma família nuclear (aquela composta por um casal heterossexual e por seus filhos). Já à mulher resta o “sucesso” de ser a esposa submissa de um homem bem-sucedido e ser uma dona de casa exemplar. Em outras palavras: a pessoa que se reconhece como queer, e a mulher que não de encaixa nos moldes de feminilidade estereotipada invariavelmente estão acostumadas a serem entendidas como uma falha, e sabem que o ato de falhar nessa sociedade é um modo efetivo de contestar e desestruturar o status quo do capitalismo e da heteronormatividade. Ao analisar o que é sucesso através de uma lente feminista, sendo o sucesso feminino “medido sempre a partir de padrões masculinos, e o fracasso do gênero com frequência significa estar livre da pressão de ser igualar aos ideais patriarcais, não ser bem-sucedida na mulheridade pode oferecer prazeres inesperados” (p. 23), Jack da início à sua jornada rumo ao sucesso de nos convencer a apostar no fracasso.
Partindo das animações em CGI, o autor cita os pioneiros na criação daquela tecnologia — que eram, em sua maioria, pessoas rejeitadas na academia que abraçaram o fracasso — que criaram seus projetos independentes para explorar um ambiente completamente novo, e inclusive, usando filmes infantis teoricamente inofensivos como analogias contra vários tipos de explorações e opressões, sejam elas relacionadas à classe, raça, direitos trabalhistas ou gênero. Um aspecto interessante acertadamente apontado pelo autor é o fato de que a animação por si só já pode ser considerada queer devido à falta de gênero em insetos, monstros, ou até mesmo quando casais de personagens são compostos de espécies diferentes de animais.
Ao citar Kathryn Bond Stockton, a criança — o público alvo desses filmes — “já é, sempre, queer, e deve, portanto, ser rapidamente convertida em proto-heterossexual” (p. 112). O primeiro capítulo destinado aos filmes em CGI é uma atração à parte, uma vez que, a priori, o foco são todas as informações contundentes, mas não obstante, o autor perambula em um delicioso sem rumo organizado. Ao desenvolver seu pensamento acerca do filme “Bee Movie”, por exemplo, Jack acaba se enveredando por leis trabalhistas, opressão de classe e capitalismo global, finalizando o capítulo exaltando o poder da abelha rainha, que segundo ele, “é fêmea e queer, além de estar concentrada em produzir não bebês, mas sim um néctar viciante: mel” (p. 84).
Foto: Albert Armengol
Uma das ideias mais interessantes — em um livro já repleto de pontos interessantíssimos — acontece quando o autor começa a analisar o trabalho fotográfico da dupla Cabello/Carceller, mais precisamente quando eles usam fotografias de piscinas vazias como uma analogia para o sucesso versus fracasso. Citando Walter Benjamin, ele escreve que “a piscina também funciona como fetiche, um símbolo saturado de luxo […] a água em uma piscina reflete o corpo e transforma espaço em um sonho resplandecente de relaxamento, lazer, recreação e leveza […]. Quando a piscina já não faz sentido como marca de riqueza e sucesso, ela fica disponível para a significação queer como um espaço simbólico de fracasso, perda, ruptura, desordem, caos incipiente e o desejo” (p. 162).
Uma amiga costumava dizer que não existe nada mais sem sentido do que pobre de direita. Parecendo seguir uma vertente desse raciocínio, no capítulo 5, intitulado “O assassino em mim é o assassino em você: homossexualidade e fascismo”, o autor pergunta: “o que acontece quando encontramos vários exemplos de gays ou lésbicas que colaboram com regimes politicamente conservadores e condenáveis em vez de se oporem a eles?” Neste capítulo o autor volta suas atenções para um assunto espinhoso: a ligação entre a homossexualidade, o homoerotismo e o nazismo, mais precisamente o estranho fetiche sexual que alguns gays sentem pela farda nazista. O fetiche acerca de uniformes em geral é mundialmente conhecido, mas ainda sim, foi um choque saber que existe uma vertente dentro da comunidade gay masculina que fetichiza o nazismo.
Em última análise, por tratar-se de um tema polêmico, a pergunta feita por Jack Halberstam, assim como o conteúdo do capítulo como um todo, precisa de um texto completamente só dela. De minha parte, foi a primeira vez que vi temas tão interessantes escritos de uma forma tão peculiar, instigante e provocadora.
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