Uma mulher negra que vive no sul dos Estados Unidos, no século XX, sem perspectiva de vida, abusada e oprimida, escreve para Deus e conta tudo que se passa em sua vida.
Logo na primeira página, nos damos conta de como vai ser dolorosa a leitura. Levamos um baque ao ler que Celie foi abusada sexualmente pelo pai. Teve duas gravidez, mas em nenhuma delas pode ficar com os filhos porque o pai os tirou dela. Quando sua mãe faleceu, teve que cuidar da casa e dos irmãos. Não pode continuar os estudos, mas sua irmã Nettie ia para escola e tentava lhe ensinar tudo que aprendia. Quando Celie percebeu que seu pai começou a olhar de forma maliciosa para Nettie, fez de tudo para protegê-la, para que não lhe acontecesse o mesmo que com ela, pois sua irmã tinha grande potencial para ser uma pessoa com um futuro melhor do que o dela.
Um homem, chamado por Celie de Sinhô, pediu Nettie em casamento, mas seu pai recusou veementemente o pedido e ofereceu a mão de Celie, visando livrar-se dela. Depois de muito insistir, o Sinhô finalmente aceitou casar-se com Celie, que saiu da casa do pai e foi para a casa do marido. Teve que aturar os quatro filhos de seu marido e cuidar da casa. Além disso, levava surras do marido constantemente.
Antes de mudar para a casa do marido, Celie ficou sabendo que ele era apaixonado por Docí Avery, uma mulher que ia na contra-mão de tudo que ela conhecia: bonita, inteligente, bem vestida e independente. Uma artista que saía em turnês a trabalho. A primeira vez que a viu foi por foto e foi tomada por uma admiração instantânea. Já depois de casada, Docí adoeceu e o Sinhô a trouxe para casa para cuidar dela. Foi daí que Celie conheceu o amor verdadeiro. As duas iniciaram um relacionamento, primeiro de amizade, depois, amoroso. E é lindo acompanhar o descobrimento de Celie de seu próprio corpo e ver como Docí a faz se descobrir, se encantar e aprender cada vez mais.
“Eu nem olho pros homem. Essa é que é a verdade. Eu olho pras mulher, sim, porque num tenho medo delas”. (p. 14).
Em um dado momento, Celie descobre cartas de sua irmã Nettie e então passa a escrever para ela e deixa de endereçar suas cartas para Deus. Começa a questionar a existência de Deus e essa parte é muito tocante. Juntamente de Docí, começa a questionar e tenta entender quem é Deus, onde ele está, porquê nos apegamos tanto a um ser que nunca vimos.
Nesse livro as mulheres desempenham um papel importante. Por mais que vivam em uma sociedade machista e racista, não se deixam abater. Como é o caso de Sofia. Ela era casada com um dos filhos do Sinhô, que fazia de tudo para transformá-la em uma esposa como as outras, que abaixa a cabeça para tudo que o marido fala. Mas Sofia era diferente. Ela sempre respondia à altura. Era desbocada e destemida. Se levava um soco do marido, ela dava outro nele. Chegou uma hora, que se tornou impossível a convivência dos dois debaixo do mesmo teto, porque ia chegaria um momento em que iam matar um ao outro. Sofia não foi criada para ser uma mulher submissa e nunca aceitou ser tratada como tal. Também era muito orgulhosa e independente. Foi assim que foi presa após desacatar a mulher do prefeito, uma branca que a queria como empregada doméstica.
“Alguma vez você já viu uma pessoa branca e uma negra sentada lado a lado num carro, quando uma delas num tá ensinando a outra como guiar ou mostrando como limpar o carro?”. (p. 121)
É um livro impactante. Que expõe a violência que as mulheres negras sofrem das mais diversas formas: a violência sexual, doméstica, social. Mas, em contraponto a isso, também mostra como as mulheres negras são fortes, unidas e zelam umas pelas outras. Como é o caso de Celie com Nettie, de Celie com Sofia e de Celie com Docí. A relação sexual entre Celie e Docí não é o foco do livro, mas faz com que haja uma desconstrução dos romances heteronormativos.
A narrativa epistolar, em primeira pessoa, cheia de erros gramaticais, não é em vão. Isso faz com que tenhamos uma proximidade maior com a protagonista, que é uma pessoa simples, quase analfabeta, mas não deixa que isso a impeça de escrever sua história.
A edição que li foi a da editora Marco Zero, de 1982. A editora Record, pelo selo José Olympio, publicou uma nova edição em fevereiro desse ano e está a coisa mais linda.
Acredito que não é qualquer pessoa que consegue ler esse livro até o final. É realmente muito doloroso, porque apesar de ficcional, sabemos que muito do que está lá aconteceu em algum momento na vida real. Mas vale muito a leitura. É muito enriquecedor e construtivo para todos, mas principalmente para as mulheres negras. Porque representatividade importa sim.
6 respostas
Queroooo muitooooo! Já assisti o filme umas três vezes, e quero ter a experiência de ler cada linha dessa história pela grandiosidade, pela essência e por tudo que ela representa.
atraentemente.blogspot.com
Já chorei muito com o filme. Preciso ler o livro.
A questão racial está longe de ser erradicada. Cortam -se o mal aqui, cresce outro ali sob forma aparentemente benéfica e é no entanto a forma mais velada de preconceito.
Como sempre excelente texto. bjs
http://www.mundoliterando.com.br/
Nossa, eu não sou muito fã de romance, mas esse livro me chamou atenção pelo título e agora, mais ainda, pela sua resenha. Parabéns!!
Oi Maria, tudo bem? Eu PRECISO ler esse livro. Só pela resenha, já sei que vou adorar. Vou sofrer, claro. Mas histórias assim, precisam ser lidas. E representatividade, importa sim.
Um beijão
http://profissao-escritor.blogspot.com.br/
Que livro em, o começo já me parece cheio de polêmicas, abuso infantil, incesto, maus-tratos, e muito mais, porém, interessante a parte em que Celie descobre-se com a Docí, o livro me parece bem legal. Bela resenha.
http://www.vestigiodelivros.com.br
Olá, Maria.
Estou de olho nesse livro exatamente por mostrar a força das mulheres negras em uma sociedade machista, sem falar que aborda o racismo de maneira inteligente.
Outro ponto que me agrada é a desconstrução dos relacionamentos heteroafetivos.
Ótima resenha, como sempre.
Desbravador de Mundos – Participe do top comentarista de junho. Serão quatro livros e dois vencedores!