Dionne Brand é uma intelectual formidável. Nascida em Trinidad e Tobago e radicada no Canadá, é poeta, romancista e ensaísta, sendo uma enorme referência para muita gente. No Brasil, Ana Maria Gonçalves já vinha divulgando o seu pensamento há anos, sempre falando com paixão de Um mapa para a porta do não retorno: notas sobre pertencimento, que fora finalmente publicado no país em 2022 pela editora A Bolha, com tradução de floresta e Jess Oliveira. Colaborando com esse movimento, a Bazar do Tempo veio na esteira em 2023. Primeiramente publicando Nenhuma língua é neutra, livro de poemas, e logo em seguida, Pão tirado de pedra: raça, sexo, sonho, política. Ambos traduzidos pelas ótimas Jade Medeiros e Lubi Prates, sendo que este último também conta com um posfácio escrito por Jess Oliveira e Bruna Barros.
Pão tirado de pedra, editado originalmente em 1994, é uma reunião de ensaios nos quais a voz bastante pessoal de Dionne Brand é a primeira coisa a nos chamar a atenção. Ela parece fazer questão de deixar claro que a sua leitura crítica do mundo é perpassada pelas suas experiências, sempre se pondo no texto, evadindo-se a forma — típica da academia — que pretende tomar distância daquilo que se trata através da escrita. Brand se põe no texto, mas não no centro dele. Ela parte de suas experiências e perspectivas, mas não para falar de si. Ela olha para o mundo, sempre para ele.
Como o subtítulo da obra já indica, Pão tirado de pedra discorre sobre diversas questões em torno de raça, sexo, sonho e política. Brand expõe suas inquietudes de maneira bem elaborada e convincente, nos mostrando a autora eloquente e estilosa que é. Portanto, ao longo dos quinze ensaios que compõem essa reunião, a autora não se rende a ideias fáceis nem se curva à nenhuma força opressora: pelo contrário, as confronta e contesta. É nesse contexto, por exemplo, que sua crítica à branquitude ganha corpo, sobretudo quando se volta para a academia e a intelectualidade canadense, que à época da escrita de tais ensaios, não era só majoritariamente branca, como também masculina, cis e hétero — o que talvez não tenha mudado tanto assim. A propósito, na introdução escrita para a edição de 2019, Dionne Brand comenta que depois dos vinte e cinco anos que separavam a primeira edição desta, acreditava que várias das perguntas que ela levanta nesses ensaios já teriam sido sanadas, o que não aconteceu. As suas críticas à branquitude, ao machismo, ao academicismo conservador, como citamos há pouco, poderiam ter sido feitas atualmente — e o mesmo vale para os outros argumentos que expõe na obra. E sentimos isso ao percorrer a maioria dos ensaios do livro. Isso se não todos. O que é bastante sintomático. O pensamento arguto, inquieto e decolonial que envolve as reflexões de Brand já naquela época ainda são pertinentes nos dias de hoje. Infelizmente.
Outro tema recorrente nos ensaios de Pão tirado de pedra é a ideia de pertencimento. Tópico importante para Brand, ele aparece em diversos momentos e nos mais variados contextos. Ser mulher, ser lésbica, ser negra, imigrante, vislumbrar um outro horizonte político e cultural, tudo isso contribui para que o fora de lugar seja um sentimento familiar à autora. Portanto, não é de se espantar que a imaginação crítica e radical seja uma ferramenta tão poderosa nas mãos de Brand. Não à toa, a linguagem, o espaço do fora, seu domínio. A poesia é a sua língua. Até mesmo ao olhar atenta ao rés do chão para essa questão, nos fazendo enxergar imagens belas como a que constrói ao dizer que “o migrante é o único sujeito no mundo cujo passado está a um voo de dez horas de distância”. Uma das inúmeras facetas pelas quais esse ponto de fricção se revela nesses ensaios da poeta.
E não podemos deixar a escrita de Dionne Brand passar em branco: a qualidade literária de seu texto é pulsante. Vemos isso em textos como “Emprego”, que se fecha em um único parágrafo que não passa de uma página. Brand nos deixa em vertigem com a maneira como faz do seu trabalho de linguagem tão vivaz. Ela nos transmite sua expectativa, sua frustração, sua vergonha e sua raiva que faz fronteira com a resignação — mas não a permitindo — como se fosse nós a vivenciá-las. O mesmo acontece em “Para o norte, para a casa”, no qual é bem instigante a maneira com ela nos localiza tão bem no cenário frio — de cor e temperatura — do norte para, sem aviso prévio, nos acertar em cheio com um breve relato do que é ser a única pessoa negra daquela região do Canadá. Uma artista.
Pão tirado de pedra é uma ótima coleção e que faz jus à sua autora. Preocupada com a vida, a qual se debruça pelos recortes de gênero, sexualidade e raça, Dionne Brand se mostra uma escritora destemida e com muito a dizer. Vide seu repertório, que para além dos temas dos quais tratamos aqui, também se volta para arte, como a música e a literatura. Uma baita crítica cultural na melhor acepção do termo. Sem dúvida, seus pontos de vista e argumentações tem muito a colaborar com uma construção de conhecimento que só tem a se fortalecer quando feita de forma coletiva, movimento bem conhecido pela diáspora negra. Fica o desejo de que suas palavras cheguem mais e mais pelas bandas de cá. E não só sua poesia e prosa crítica. Que a sua ficção — tão rica quanto essas suas outras produções — também encontre um lar entre a gente.