A passabilidade em Luca

 

Direção: Enrico Casarosa. Roteiro: Enrico Casarosa, Jesse Andrews e Simon Stephenson. Elenco: Jacob Tremblay, Jack Dylan Grazer, Emma Berman, Saverio Raimondo, Maya Rudolph, Marco Barricelli, Jim Gaffigan e Sacha Baron Cohen.

Nota: ★★★★★

Usar monstros, mutantes e aliens como metáfora para os oprimidos não é algo novo nem no cinema norte-americano, muito menos na literatura. Em algum lugar na Riviera italiana entre as décadas 50 e 60, uma intensa amizade desabrocha durante o verão quando dois monstros marinhos adolescentes, Luca Paguro (Tremblay), de 13 anos, e Alberto Scorfano (Grazer), de 14, se conhecem e simplesmente não se desgrudam um do outro. Luca e Alberto possuem a habilidade de se transformarem em humanos quando estão fora da água, e com isso, sonham em participar e vencer — com a ajuda de Giulia Marcovaldo, uma menina humana — a corrida de Portorosso, para enfim poderem realizar o sonho de comprar uma Vespa e… desaparecer em uma viagem a dois pelo mundo, em busca de um lugar onde eles possam ser aceitos.

Lente queer

Coloridíssimo, afinal de contas estamos diante de uma produção da Pixar, Luca, na superfície pode parecer apenas uma inocente história de amizade, mas se prestarmos atenção, poderemos pescar várias dicas de que estamos diante de uma produção que nas entrelinhas se propõe a discutir assuntos importantes como abandono paterno, homofobia e xenofobia — mesmo com o diretor falando em entrevista que sua intenção era apenas fazer um filme sobre a amizade, mas que qualquer interpretação era bem-vinda.

Luca é terminantemente proibido de sair do mar. Seus pais sabem que o mundo dos humanos é terrivelmente hostil, e essa hostilidade, se optarmos por entender os monstros como uma analogia aos imigrantes, pode ser lida como xenofobia; se olharmos a relação dos dois através de uma lente homossexual, o filme funciona como uma devastadora analogia para a homofobia. Não é de se estranhar que em determinado momento os pais de Luca parecem de fato pais de jovens gays, quando se mostram preocupados com o futuro do filho. Não precisamos ir muito longe, aliás, para perceber que o vilão Ercole Visconti (Raimondo) possui todos os traços do homofóbico que é secretamente gay pois ainda não está em paz com a própria sexualidade, e por isso pratica bullying em quem vive feliz sendo colorido e escandaloso sem culpa.

Passabilidade

Luca e Alberto possuem a habilidade de se passar por humanos, mas essa passabilidade termina se eles entrarem em contato com a água. Isso, é claro, é usado como alívio cômico. Infelizmente Hollywood sempre usou pessoas gays e trans como mero alívio cômico em suas produções, e felizmente, essa prática parece estar chegando ao seu derradeiro fim. A sexualidade, orientação ou identidade — no caso das mulheres trans — era perigosamente usada como “reviravolta” em muitas produções. Na realidade, para pessoas trans, gays, pansexuais e bisexuais a passabilidade heterossexual (ou cis, no caso das trans) é muitas vezes a garantia de suas vidas. No filme, sabemos que Luca e Alberto correrão risco de vida caso suas identidades sejam descobertas, portanto, embora a gag recorrente em que ambos ficam prestes a serem descobertos nos faça rir em primeiro momento, vale repensar se é realmente ético rir de algo que nas entrelinhas vem carregado de tamanha crueldade.

Riquíssimo em seu visual, bem como na exploração daquele universo italiano fictício, Luca ganhou pontos comigo graças ao aspecto saudosista com relação ao cinema italiano. Em determinado momento, por exemplo, vemos uma foto de Marcello Mastroianni no quarto de Aberto, e é impossível não associar a caracterização e o design de criação de Ercole ao astro italiano Roberto Benigni, vencedor do Oscar de melhor ator pelo filme A vida é Bela, de 1997. Luca também faz parte da nova fase da Pixar, que busca pela diversidade em seus lançamentos, visto que em anos recentes o estúdio lançou Viva: a vida é uma festa, que abordava a cultura mexicana e contava com um elenco encabeçado por Gael Garcia Bernal; já em 2020 o estúdio lançou Soul, estrelado por Jamie Foxx, Alice Braga e Angela Bassett; no final deste ano a Disney também lançará Encanto, que foca em uma família colombiana com superpoderes; e em 2022 a Pixar lançará Turning Red, dirigido pela vencedora do Oscar Domee Shi, sobre uma garota chinesa que se transforma em um gigante urso panda vermelho sempre que fica animada.

O futuro da Pixar parece estar direcionado à diversidade e ao protagonismo feminino, e isso me faz, apesar de não ser um aficionado pelas animações hollywoodianas, ficar bastante animado para os próximos lançamentos. Luca está disponível na Disney+.


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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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