O que é uma vírgula? E um pretovírgula que a partir dela se constitui como sujeito poético? Ler Pretovírgula, de Lucas Litrento, publicado pelo Círculo de Poemas, uma parceria entre a Editora Fósforo e a Luna Parque Edições, me deixou feliz e otimista, com o sentimento de que comecei com sorte nas leituras de 2023.
São muitas as possibilidades da linguagem poética de Pretovírgula e nas primeiras estrofes conhecemos a história de Sandrinho. Os versos são narrativos, contundentes, ressoam o ritmo e batida do rap. Esse primeiro poema já desperta a curiosidade e nos faz lembrar que poesia, afinal de contas, é ritmo. Sandrinho, “o pesadelo do sistema não tem medo da morte”. O contexto é Maceió e lá acontece um massacre. Dom Miguel, vulgo Sandrinho, é o responsável por isso, “aquele que come primeiro”.
“Trinco”, poema que vem a seguir, introduz a encruzilhada por onde caminharemos algumas tantas vezes em Pretovírgula. A encruzilhada onde se escuta o som de batidas, em que existe as sombras, a noite e o breu, revelando os desníveis da avenida, oferenda. Com outras imagens poéticas presentes em nosso mundo-terreno como “um copo americano cheio de cerveja escapando da mão” ou uma “samambaia de plástico”, Lucas Litrento chama a nossa atenção para o detalhe e o instante, “pois sabemos desde o dia das nossas mortes que esse tempo nada diz, é puro silêncio”, a consciência do tempo espiralar sobre o qual já falava, Leda Maria Martins.
“Vulgo”, evoca o pretovígula: “eu disse pretovírgula/ e preto era o vulgo do último nó/ ou quem sabe a sombra da partilha das rimas/ preto era eu aos quinze, a vírgula presa nos dentes aparentava se quebrar”, pois é preciso ultrapassar os limites, as esquinas fechadas impostas pelo cotidiano. Pretovírgula, então, torna-se uma ótica de observação e ruptura das armadilhas do cotidiano, não só uma posição no mundo do eu-lírico enquanto sujeito. Pretovírgula é força, tanto que em “Rodagem” Ogum aparece na poesia que poderia ser um ponto cantado pelas religiões de matriz africana e é notável que Lucas Litrento, conhecedor das várias possibilidades em transformar as vírgulas do cotidiano em poesia, experimenta as diversas formas de dispor as palavras em uma composição poética. A escolha de como apresentar os versos direciona o ritmo da leitura, como se os poemas de Pretovírgula nos guiasse com uma câmera. Em “Imagem de fantasma” não temos versos, mas sim uma narrativa que nos mostra uma pluralidade estética da obra.
Outra temática que atravessa Pretovírgula é o racismo. Presente em nossa estrutura social e na linguagem, lançando sobre corpos negros vários vulgos, o racismo é areia movediça. Diante disso, Pretovírgula é a reinvindicação pela linguagem, por outros vulgos. Chegando ao final da obra, vemos Exu nos esperando em outra encruzilhada, poema-cruzo, com outro tempo, outro ritmo. Diferente dos outros poemas apresentados, aqui espirala o tempo próprio de Exu em sete páginas, que separam as sete estrofes, curtas e diretas, aquele que conduz as vírgulas do tempo.
O poema central e que dá título ao livro é um manifesto em primeira pessoa. Diz o que deve ser dito, tudo aquilo que se entala diante de uma vírgula, e embora a vírgula seja um sinal gráfico utilizado na escrita, Pretovírgula, pelo ritmo e seu modo de enunciação, nos lembra que a poesia também está na oralidade. Esse livro deve ser lido em voz alta. É um grito.
É preciso considerar que na linguagem, a vírgula sugere uma separação, uma pausa, um silêncio, uma interrupção. O que pode interessar aqui são as entrelinhas da vírgula e o que vem depois. Pretovígula, por meio da linguagem, se relaciona com outras poéticas, como os Racionais MC’s, Hilda Hilst, Jorge Ben, Julio Cortázar, Catulo e Safo.
É preciso utilizar a palavra para que ela ressoe as encruzilhadas da vida. Que Lucas Litrento continue: “escrevendo esses refrões como se nada mais importasse”.