A Primavera que Caço é um Mar, de Maiky da Silva, desde o título dá pistas da intensidade poética com que a narrativa será construída. Dividido em quatro partes – Repressões, opressões, depressões e ressurreições –, o livro é narrado pela voz do personagem principal, um jovem rapaz que tem um trato peculiar com a linguagem e transforma suas vivências e pensamentos em experiências linguísticas impressionantes.
Desse modo, vamos conhecendo o protagonista que intercala a narrativa do tempo atual, já adulto, com episódios de sua infância e juventude, o que faz com que seja possível entender, ou pelo menos levantar hipóteses do que o levou ao lugar no qual está atualmente: esperando para ser pai. Esse lugar da espera não é dos melhores, faz com que relembre a ausência da figura paterna biológica em sua vida, como também o relacionamento complicado que teve com aquele que deveria fazer esse papel, fazendo com que sinta medo de não ser um bom pai, uma vez que não teve experiências satisfatórias nesse campo familiar. Além disso, chega um momento na vida do protagonista em que ele começa a sentir-se sufocado, com vontade de chorar e conforme o tempo passa, vai ficando cada vez mais difícil controlar a angústia, esconder dos colegas de trabalho e da família, o sentimento de sufoco transborda em convulsões, em infligir dor a si mesmo em uma tentativa vã de controle. Médicos e psicólogos são necessários para que o protagonista descubra o que faz com que ele se sinta dessa forma e não é nada animador o diagnóstico a que se chega.
É curioso notar a relação que o livro tem com os nomes, são poucos os que aparecem. O narrador-protagonista não é nomeado, nem sua mãe, enquanto os dois pais são, o irmão, a companheira e alguns colegas de trabalho. Também não é citado o nome das cidades na qual a história acontece, sabe-se que de início é uma cidade pequena, pacata, e depois há uma mudança para a cidade grande, da primeira sabe-se apenas que é “Outra dessas cidades minúsculas do sertão”, dessas em que há casas com duas portas, uma na frente e outra nos fundos. Mas se esses são nomes que a ausência não compromete o entendimento da história, por lado há nomes que não poderiam deixar de aparecer, como é o caso das doenças psicológicas que o protagonista descobre que tem e essa nomeação é importante para que se saiba como enfrentar o problema da forma correta, ao passar do desconhecido para o conhecido, deixa de ser um inimigo tão invisível.
Desde o início a narrativa é permeada por algo que parece ser uma metáfora: figuras de porcos que roncam. Eles passeiam por todo livro de diferentes formas, seja em pesadelos angustiantes ou pensamentos paralisantes durante o dia. Pode parecer deslocado, mas no final entendemos o que significam, assim como também entendemos o título.
Muitas vezes o próprio fazer literário também é tema recorrente na narrativa e alguns recursos usados remetem a outros autores, como Machado de Assis, com seu narrador que busca um diálogo com o leitor e Manoel de Barros, com seu jeito tão característico e poético de fazer uso da linguagem, evidenciando uma sensibilidade extrema em suas construções.
Percebemos que o livro é mais do que um lamento pela ausência paterna, faz refletir acerca dos problemas psicológicos, do modo insensível com que a sociedade lida com eles e traz à tona a problemática do suicídio, tudo isso por meio de reflexões poéticas e filosóficas acerca da vida, nas quais somos guiados pelo fluxo psíquico e construções metafóricas. E assim, aos pedaços, o protagonista destrincha-se em algo que a princípio pode parecer devaneio, mas logo compreendemos sua concretude.
É um livro que a cada página tem um trecho impactante, desses que ao final da leitura percebemos que o marcamos quase todo. Indico muito esse livro, que eu considero uma das melhores leituras que fiz esse ano e uma das obras-primas do autor.
Este livro, assim como as demais obras do autor, pode ser adquirido no site da Amazon.