A autora sueca Liv Strömquist além de quadrinista também estudou ciência política e sociologia, duas áreas do conhecimento que são centrais em sua produção artística. Eu já havia lido A origem do mundo publicada pelo selo Quadrinhos na Cia em 2018, que faz um levantamento histórico sobre os discursos e teorias sobre o corpo da mulher, tudo isso em quadrinhos com ilustrações extremamente ácidas e cômicas. Liv Strömquist mescla o conteúdo teórico com as artes visuais e produz uma leitura divertida. Os quadrinhos podem até parecer coisa de criança, mas não é o caso de suas obras. No lançamento de 2021 A rosa mais vermelha desabrocha, Strömquist analisa o amor nos tempos do capitalismo tardio procurando responder: por que as pessoas se apaixonam tão raramente hoje em dia?
Com bom humor, o livro se inicia com um comentário sobre uma sucessão de namoros de Leonardo Dicaprio que sempre terminam amigavelmente. Strömquist aponta que de acordo com alguns sociólogos e filósofos o sentimento de apaixonar-se está ficando cada vez mais raro hoje em dia e junto dela passamos a nos questionar o porquê disso. Strömquist discute diversos pontos de vista teóricos para responder a essa questão e chega em cinco hipóteses:
1) O desaparecimento do outro: vivemos em uma sociedade cada vez mais narcísica em que o eu não consegue perceber o outro em sua alteridade, sendo que o amor é justamente isso, apaixonar-se é enxergar a outra pessoa como absolutamente outra, incomparável.
2) O avanço da escolha racional: diante de tantas possibilidades de escolha e dever de tomar decisões, sofremos um impedimento de sentirmos um forte envolvimento emocional.
3) A nova maneira de ser um homem de sucesso: conforme Illouz (teórica bastante mencionada por Strömquist) coloca, a maneira de exercer o status masculino foi transferida para o âmbito sexual, uma vez que o feminismo avançou e os papéis de gênero tiveram de ser revistos, a sexualidade tornou-se o domínio onde os homens podem expressar e exibir sua autoridade e autonomia. Assim, se envolver emocionalmente aparentemente enfraqueceria os homens. A princípio, querer ter uma relação sólida era algo que garantia um status ao masculino, mas agora quem assumiu esse papel sociológico foram as mulheres. Então surge uma nova forma de dominação por parte dos homens que se manifesta na suposta acessibilidade emocional das mulheres e na relutância dos homens em se comprometer. Com isso, “as mulheres são forçadas a ficarem caladas sobre os seus desejos e imitam a atitude distanciada dos homens” (p. 57), e é claro que isso inibe o amor verdadeiro.
4) O desencadeamento do mundo: nesta parte temos a referência do título do livro. Eu adorei essa história. Strömquist conta que em 1960 a poeta Hilda Doolittle tinha 74 anos e estava internada em um sanatório. Um jornalista vai entrevistá-la, ela se apaixona imediatamente por ele e escreve um poema “Por que perturbar o meu declínio? Sou velha (eu era velha até a sua vinda), a rosa mais vermelha desabrocha (o que é ridículo neste momento, neste lugar, impróprio, impossível, até um tanto escandaloso) a rosa mais vermelha desabrocha (ninguém a pode impedir, nenhuma ameaça imanente ao ar, nem mesmo o tempo, que rói nossos frutos de verão), a rosa mais vermelha desabrocha (É preciso levar isso em conta).” A Hilda, aliás, tinha bastante vocação para se apaixonar, quando ela namorava o Ezra Pound, se apaixonou por uma amiga em comum dos dois e embora as duas nunca tenham tido uma relação mais séria, viveram uma paixão muito intensa.
5) A inaptidão para a morte: para Erich Fromm, as pessoas procuram serem amadas e não amar, um foco equivocado se tratando do amor. Neste caso, a concepção de amor mais adequada seria aquela do Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry. O Pequeno Príncipe amava uma rosa e fazia tudo para o seu bem-estar. Um dia ele descobre um jardim com muitas rosas idênticas, mas depois de conversar com a raposa, constata que a sua rosa é a mais especial de todas porque ele deu amor a ela (isso é também lhe dar alteridade) e por isso enxerga a rosa dele como única. O amor significa uma entrega de si mesmo, uma conclusão absoluta porque pressupõe uma morte de si e isso transcende, superando a mera adição e acumulação capitalista.
Bem, com essas hipóteses, o que Liv Strömquist nos mostra é que no sistema capitalista vivemos na lógica da produtividade e do bom desempenho, portanto, tudo que possa ferir essa lógica nos parece ruim, como o amor e a paixão. O amor parece um sintoma do nosso fracasso e aí Liv Strömquist entra em uma discussão mais feminista sobre isso: se o amor é visto como uma fraqueza e as mulheres atualmente estão ocupando esse lugar de quem ama, novamente temos a tentativa de afirmação de que as mulheres estão em um lugar de inferioridade.
Há uma ideia de que o amor precisa ser superado e que se um amor não foi bom, pode ser rapidamente substituído. Isso é a cara do capitalismo. Essa ideia é bastante disseminada na música. A autora cita a Beyoncé, mas para ficarmos em um exemplo mais próximo, temos as canções da Anitta, por exemplo. Se os homens estão nesse lugar de que não amam e não se apaixonam podendo trocar de namoradas a qualquer momento, muitas músicas e outros meios discursivos sugerem que as mulheres também assumem esse comportamento.
O capitalismo nos sugere que não vivamos o amor. Por isso as pessoas se apaixonam de verdade tão raramente hoje em dia. Somos seduzidas a viver como o sistema capitalismo manda: casar, construir família, ter filhos. Mas a entrega para o amor é algo condenável no capitalismo. Viver uma paixão, e um amor é bom. Viver isso, genuinamente, é bom. Há quem diga que quem ama é mais feliz e eu acredito nisso. Em A rosa mais vermelha desabrocha Liv Strömquist nos mostra na teoria as questões envolvidas no amor. Esse livro, inclusive, é apaixonante.
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