“Eu me senti sozinha. Senti falta daquelas vozes. Senti falta das mentes por trás delas. Eu queria ser vista. Essa necessidade tomou meu coração.”
Escrito por Amal El-Mohtar e Max Gladstone, É assim que se perde a guerra do tempo (publicado no Brasil pela editora Suma, com tradução de Natalia Borges Polesso) é — como se costumam dizer lá fora — a breath of fresh air: um frescor não apenas no gênero ficção científica como também na literatura como um todo. Mesclando o futurismo do sci-fi com o gênero epistolar, o romance atinge a perfeição ao mostrar o crescimento de um amor proibido entre duas assassinas rivais terrivelmente solitárias que viajam entre o espaço e o tempo, mas perde um pouco sua força quando o foco não são as cartas repletas de declarações de amor — que fariam inveja em no protagonista de Os sofrimentos do jovem Werther, ou até mesmo Romeu e Julieta.
As protagonistas são Red e Blue, espiãs que viajam no tempo por séculos cumprindo as missões recebidas por suas respectivas superiores, até que um dia uma delas é surpreendida ao receber uma carta da outra. A partir deste momento entramos em um jogo epistolar de sedução entre inimigas mortais quando as cartas são descobertas ao final de cada missão cumprida, e a princípio, uma das protagonistas — e o leitor, como consequência — entende aquilo como uma armadilha, uma tentativa de matar a rival, ou simplesmente a recrutar como espiã. Não obstante, a relutância inicial começa a se transformar em um flerte inocente, que uma ou duas cartas depois, pode e deve ser considerado um dos amores mais intensos de toda a história da literatura. Devo também apontar que o modo escolhido pelos autores para que o já quase obsoleto hábito de escrever cartas seja incluído na narrativa merece aplausos por sua inventividade.
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Com trechos poeticamente belíssimos, ainda que horripilantes (“Se o planeta durasse o suficiente, as vinhas brotando nas bocas dos cadáveres dariam frutos.” p. 11), o livro possui uma estrutura simples, talvez escolhida acertadamente para dar mais destaque ao amor entre as duas personagens, e a prova disso pode ser o fato de que a guerra que as protagonistas estão a lutar pode ser entendida como um mero Macguffin, servindo apenas como um veículo para que esse amor espetaculoso possa ser desenvolvido. Um detalhe curioso acerca da criação das cartas: elas foram escritas a partir da resposta recebida anteriormente por cada autor — Amal escreveu as cartas de Blue, e Gladstone as de Red.
Amal e Gladstone (créditos de imagem Civilian Reader)
Um estranhamento permeia a história em seus primeiros 30% devido à mistura entre ficção científica e literatura epistolar, mas assim que — ou se — o leitor conseguir se situar na história (que infelizmente demora mais do que o ideal para engrenar e é um pouco confusa) fica muito mais fácil se entregar a essa simbiose de gêneros que possui momentos dotados de uma paixão que realmente é capaz de matar, tamanha a grandiosidade desse amor vivido por duas mulheres que se recusam a serem moldadas na ideia heteronormativa das relações — nesses momentos a história se transforma em uma obra-prima emocional que ultrapassa o binarismo dos gêneros, uma vez que mesmo usando os pronomes ela/dela, Blue e Red possuem várias formas e aparências.
Em última análise, É assim que se perde a guerra do tempo (vencedor dos prêmios Nebula e Hugo de melhor novela em 2019 e 2020 respectivamente) é uma obra irregular quando o foco é a ficção científica per se, mas que possui uma força colossal quando os autores direcionam seu incontestável talento para a criação daquele amor arrebatador e histórico entre duas mulheres através das cartas; e os fãs mais atentos do poeta e pintor William Blake poderão encontrar uma citação quase beirando a displicência que dará indícios de quão grandioso será o terceiro ato da obra.
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