“O desafio do século XXI não é reivindicar oportunidades iguais para participar da maquinaria da opressão, e sim identificar e desmantelar aquelas estruturas das quais o racismo continua a ser firmado.” – Angela Davis
Conhecida mundialmente por já ter sido classificada como a “Inimiga Pública nº 1” dos Estados Unidos nos anos 70 — acusação estapafúrdia fruto do pânico coletivo norte-americano acerca do comunismo, que está evidentemente linkada ao racismo —, e por conseguinte, por sua extensa obra abordando as prisões e penitenciárias de segurança máxima como heranças da escravidão, Angela Davis — que evidentemente não precisa de apresentação — é uma autora, filósofa, ativista política e professora norte-americana cuja obra aborda temas — ou a interseção múltipla de temas como — gênero, transfeminismo, raça, sexualidade, classe e o sistema prisional norte-americano, que ela chama apropriadamente de complexo industrial-prisional.
Se pudéssemos resumir suas influências literárias — uma tarefa praticamente impossível —, acabaríamos em nomes como Frederick Douglas, W.E.B. Du Bois, e até mesmo Adorno, um dos fundadores da Escola de Frankfurt, como algumas de suas influências. Sempre, é importante destacar, analisados e criticados através de uma lente neomarxista, anti-guerra, anti-prisão e antirracista pautada (e influenciada) pelos movimentos negros dos anos 70.
Em A Democracia da Abolição: Para além do império, das prisões e da tortura, publicado em 2005 nos Estados Unidos, e inexplicavelmente no Brasil somente após 15 anos pelo selo Difel da editora Bertrand Brasil, com tradução de Artur Neves Teixeira, a autora de Estarão as Prisões Obsoletas? é entrevistada pelo autor colombiano Eduardo Mendieta, respondendo perguntas sobre a política das prisões, tortura (corporal e psicológica), coerção sexual em presídios femininos, leis criadas para manter corpos negros em uma nova escravidão, e finalmente, a democracia da abolição das prisões.
Usando o escândalo das torturas e abuso de prisioneiros na prisão de Abu Ghraib em 2005 como ponto de partida, Davis critica as absurdas leis norte-americanas que proíbem permanentemente ex-detentos de votarem em sete estados (isto sem contar que em 48 estados [de 51!)] os detentos também são proibidos de votar). Quando levamos em consideração o perfil racial de quem está encarcerado, fica evidente que estas leis funcionam como ferramenta solapadora, impedindo que pessoas latinas, negras e indígenas possam exercer seus direitos de cidadãos, e assim, talvez não podendo votar em candidatos que representem melhor suas ideologias. Em Estarão as Prisões Obsoletas?, a autora afirma que se os negros e latinos encarcerados tivessem direito ao voto em 2000, Bush jamais teria sido declarado presidente, e como resultado, a onda de racismo e xenofobia gerada após o 11 de setembro poderia não ter acontecido, bem como as mortes inocentes resultantes da Guerra ao Terror.
É interessante direcionar nossa atenção ao ano de 2005, data original da publicação de A Democracia da Abolição, e relacioná-la à publicação de Amor Líquido, publicado por Zygmunt Bauman um ano antes. Ali, entre outros tópicos, Bauman critica o racismo e a xenofobia causados pela Guerra ao Terror, e durante cerca de 40 páginas — no capítulo chamado “Convívio destruído” — o filósofo aborda o sofrimento do imigrante, principalmente de países do oriente médio, que devido à mídia e aos líderes conservadores, são vistos como assassinos em potencial. Já Davis se aprofunda no tema, chamado apropriadamente de Contrato Racial por Eduardo Mendieta.
Dentro do Contrato Racial, a punição social é aceita por ser aplicada principalmente aos negros. Assim, toleramos uma sociedade altamente punitiva, pois sua punição é executada neles, e não em nós. Para Davis, o complexo industrial-prisional também contribui para a dominação das minorias raciais ao domesticar a imaginação cívica dos norte-americanos brancos.
Davis deixa claro que precisou se distanciar da prisão como tema para poder olhar para trás, analisar, e só então escrever sobre o seu próprio tempo como detenta, e em determinado momento questiona o papel — ou melhor: a falta da presença da mulher negra — nos debates acerca de temas raciais no decorrer das décadas, além de escancarar o projeto norte-americano de retirar os direitos dos presos, os forçando a ficar fora do mercado de trabalho, retornar à vida do crime, e por conseguinte, à prisão. Projeto, aliás, que possui suas raízes no final da escravidão, quando os ex-escravizados foram libertos sem nenhum plano estrutural, político ou social para que pudessem reconstruir suas vidas na sociedade. Como resultado, foram criadas leis que transformaram a “vagabundagem” em crime. Logo, os ex-escravizados que eram forçados a viver nas ruas terminavam presos, dando continuidade à escravidão — que agora ganhava o nome de prisões, penitenciárias, etc. É sintomático, aliás, a forma brilhante que Davis relaciona os linchamentos da era Jim Crow à pena de morte no país:
“Vejo a pena de morte e o linchamento ligados muito estreitamente, em particular quando se considera que ambos têm suas origens na escravidão e que aplicar a morte coletivamente era — e ainda é — muito mais provável de ser justificado quando o cadáver é de um negro do que de um branco.”
A Democracia da Abolição: Para além do império, das prisões e da tortura merece elogios pois pode funcionar ao mesmo tempo como complemento para o leitor que já conhece seu livro anterior, o supracitado Estarão as prisões obsoletas? e como uma espécie de apresentação ao tema caso o leitor ainda não seja familiarizado com o debate da abolição das prisões.
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