Luto, cultura e afetos em “Aos prantos no mercado”, Michelle Zauner

Poucas coisas nos tiram o chão como perder alguém que amamos para a morte. Evento esse que é capaz de influenciar de maneira imprevisível a nossa vida. E o luto, por mais que o imaginemos, jamais saberemos como será. Tema comum na literatura, é em Aos prantos no mercado (Editora Fósforo com tradução de Ana Ban), de Michelle Zauner, mais uma vez força motriz, com a autora nos guiando pelas suas memórias enquanto aprende a lidar com a ausência, nos mostrando como voltou a caminhar. 

Conhecida mundialmente pelo seu projeto musical Japanese Breakfast, Michelle Zauner é filha de mãe sul-coreana e pai estadunidense. Ao longo de Aos prantos no mercado, vemos como esse caldeirão cultural a fez experienciar situações singulares, reforçando que, sim, somos produtos de nossos meios. E se a sua infância foi determinante para a sua formação, o câncer agressivo e a iminente partida de sua mãe, Chongmi, também funcionou de forma propulsora em sua vida. 

O livro abre com a cena que lhe dá título — sobretudo, no idioma original (Crying in H Mart: a memoir) —, na qual Zauner é inundada pela falta da mulher que lhe deu a luz (além de uma tia que também perdera há pouco tempo). Desde o início, a tônica desse seu texto já se faz presente. Por mais que a autora narre outros episódios de sua vida, a busca pelo que fazer com todo o afeto que lhe abunda por conta do luto é o problema que ela tenta resolver.

Michelle Zauner. Foto: Reprodução.

Em termos estéticos, Aos prantos no mercado não traz novidades. A redação de Zauner é correta. Definitivamente, alguém que sabe escrever e não mais uma artista de outra seara que resolveu se aventurar pela arte da palavra. Porém, no que se refere a estilo, seu texto é plano. Sempre em linha reta. Não é ruim, mas às vezes cansa. A força de seu trabalho fica a cargo justamente do que é narrado. Afinal, é muito difícil não se identificar com as assombrações que a autora evoca. Seja pela lembrança dolorosa de quem já esteve em seu lugar, seja pelo medo de quem ainda vivenciará tais experiências. Ninguém quer perder quem ama. E ter essa possibilidade representada pelo signo de uma mãe, figura que para muitos, se não para a maioria de nós, é o maior símbolo desse sentimento — mesmo que ainda seja dúbio e cheio de espinhos — é dolorido. Não importa o que isto signifique, perder a mãe é perder grande parte de si. 

Outro vigor do texto de Zauner está em sua honestidade. Vez ou outra ela tem coragem de “dizer em voz alta” o tipo de coisa que a maioria se negaria a assumir pensar. Como quando admite que preferia que seu pai tivesse morrido em vez da mãe. Momentos como esse parecem selar uma cumplicidade da autora com o leitor, algo sempre interessante. No mais, Michelle Zauner também demonstra saber como alternar com essas lembranças difíceis outros momentos interessantes de sua trajetória. Para os fãs de sua música, deve ser um deleite conhecer algumas histórias que permeiam a sua vida de musicista. Essa é uma estratégia inteligente, pois não torna o livro tematicamente monótono sem perder de vista o porquê dele existir. 

Aos prantos no mercado funciona. Michelle Zauner é boa em criar imagens. Esse é outro ponto forte de suas memórias, pois suas cenas são claras. Ao evitar um hermetismo forçado, Zauner deixa a narrativa, que é o destaque do seu trabalho, brilhar. Por exemplo, a sua relação com a comida sul-coreana como um símbolo da saudade e do afeto que é muito bem trabalhado ao longo do texto não é só interessante, mas bonito. A relação morde-assopra com a mãe, o vínculo frágil com o pai, a família acolhedora do outro lado do mundo e a parceria rara que encontrou em seu companheiro são muito bem documentados pela autora, trazendo mais vivacidade à obra. Aos prantos no mercado sabe equilibrar luto, cultura e amor. E o faz expondo a complexidade que os costuram sem romantizá-los. Afinal, a vida é isso, um monte de contradições que vai temperando tudo e, por fim, chega a um resultado único, mas impossível de se alcançar com apenas um ingrediente.

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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