“Apanhadora de pássaros”, de Gayl Jones, e seu potencial desperdiçado

Gayl Jones

O que fazer quando sua esposa tenta constantemente tirar sua vida de maneiras completamente distintas, de modo que você sequer se lembra quando foi a última vez que não esteve em constante estado de alerta — sem jamais saber quando ou onde ocorrerá o próximo ataque ou como ele se manifestará? Essa alarmante questão é o que move a narrativa de Apanhadora de pássaros, romance de Gayl Jones. Publicada no Brasil em 2023 pela editora Instante (tradução de Nina Rizzi) — 37 anos depois de seu lançamento original, que curiosamente ocorreu apenas na Alemanha, — a obra se destaca por um texto experimental que nos apresentará a estranha relação entre três personagens negros vivendo como expatriados em várias cidades da Europa e América do Sul no final dos anos 70: Amanda Wordlaw, uma autora de romances eróticos; Catherine Shuger, uma famosa escultora diagnosticada com problemas mentais; e seu marido, Ernest, um escritor de artigos científicos.

O que chama atenção a princípio não é o fato de Catherine ser repetidamente internada por tentar matar seu marido, mas sim o fato do sujeito se recusar a abandoná-la e a recebê-la de braços abertos após cada liberação da clínica psiquiátrica da vez. Qual é o motivo pelo qual Ernest aceita fazer parte deste estranho jogo? Seria uma motivação sexual relacionada a algum tipo de fetiche, dependência financeira ou emocional? Além de ser a narradora, qual o papel de Amanda nesta relação? Esta relação a três é abusiva, erótica, ou ambas? Estas são apenas algumas das perguntas que permeiam a mente do leitor durante a leitura. Algumas delas, no entanto, nunca serão respondidas, ou caso sejam, não serão de forma satisfatória. 

Quando a narrativa tem início, o trio está vivendo em uma luxuosa casa na ilha de Ibiza, onde Catherine está trabalhando — há vários anos — em uma escultura chamada “Apanhadora de pássaros”. Ela acabou de ser liberada de uma instituição psiquiátrica, mas por estar proibida de usar equipamentos e objetos cortantes, precisou mudar o estilo de suas esculturas, as deixando compatíveis com o seu estado de saúde mental, e consideradas “menores” por críticos — detalhe que a fez perder seu status de celebridade entre os intelectuais. Após alguns acontecimentos que envolvem longos diálogos em salas de estar e restaurantes à beira da praia, Gayl Jones parte para uma série de flashbacks alternados — alguns deles confusos e desinteressantes — em que o passado e as motivações de cada um dos três protagonistas são revelados, às vezes de forma orgânica, às vezes de forma apressada e desajeitada.

Abandonando um início praticamente perfeito e repleto de potencial em que ótimas discussões são iniciadas, — entre elas a complexidade das relações femininas; a exploração da criatividade artística de mulheres negras na década de 70 e 80; e a renúncia ou abandono da própria identidade ou individualidade das mulheres em favor das expectativas ou desejos dos homens —, a autora não se aprofunda o bastante em nenhuma delas, e com isso, o livro vai ficando gradativamente sem foco, confuso — mas paradoxalmente, nunca enfadonho. E um dos principais motivos é o modo equivocado como a autora faz uso da “bomba embaixo da mesa”, técnica narrativa que consiste em fornecer informações que causarão suspense no leitor — mas sem disponibilizar estas informações para os personagens envolvidos na cena. 

De modo sucinto, podemos resumir suspense como a dilatação de uma espera, e um exemplo perfeito seria o seguinte: se um personagem está em um restaurante e uma bomba explode embaixo da mesa, os leitores levam apenas um susto. Ficam em choque, claro, mas apenas isso. Agora, se nos é mostrado uma cena em que uma bomba está sendo colocada embaixo da mesa antes do personagem chegar ao local, isto cria uma tensão crescente no leitor, que agora está preso em uma expectativa de quando a bomba vai finalmente explodir. Um problema bastante comum ocorre, entretanto, quando esta dilatação da espera é prolongada de forma demasiada, de modo que a resolução precisa ser monumental e bombástica para satisfazer a expectativa criada no leitor ao longo da cena.

É neste aspecto que considero estar o principal defeito do romance, visto que Gayl Jones nos fornece a bomba embaixo da mesa (as repetidas referências às tentativas de assassinato), mas em momento algum nós presenciamos uma explosão de fato. Ou seja, nenhuma das infames tentativas de assassinato acontecem durante a leitura, não recebemos um clímax bombástico — sequer recebemos um final satisfatório. Somos apenas informados de seus passados através da narração de Amanda, que por sinal não é uma narradora confiável. Este suspense construído desde a primeira página cria várias expectativas no leitor — expectativas que nunca são atingidas. Adicionalmente, a segunda metade do livro é afetada por constantes mudanças bruscas e incoerentes no estilo de escrita e por uma questionável ambientação mística e fantasiosa, já que Jones insiste em inserir — acredito que de forma bem intencionada —, vários personagens que apenas atrapalham o fluxo da narrativa quando na verdade tinham todas as ferramentas para enriquecê-la com camadas que poderiam nos ajudar a entender as motivações dos personagens, e principalmente a decisão de Amanda de abandonar sua vida para viver com o casal. 

Apesar dos defeitos listados acima, é importante apontar alguns acertos da autora, como detalhes inseridos de forma econômica e efetiva que trazem um contexto histórico que simboliza a promessa — ou um anseio — por um futuro brilhante. Em determinado momento, por exemplo, certo personagem, quando criança, fingia estar em Montmartre, famoso bairro parisiense, considerado o berço da pintura moderna. Esta economia de informações nos demonstra que dons artísticos já estavam presentes na vida do personagem apesar da tenra idade. Adiante somos informados que um personagem vive com sua filha em um “trailer decorado com bom gosto como um anúncio de revista dos anos 1950.” Ou seja, apenas uma sentença nos dá a dica do poder socioeconômico almejado pelo personagem, e como a mídia da década de 50 o influenciou a entender o american dream como sinônimo de realização profissional. Se ao menos esse fosse o caminho escolhido por Jones para nos fornecer detalhes sobre o passado dos personagens, tenho certeza que o romance seria muito mais interessante.

Apesar de ser uma leitura rápida, bem humorada e com breves comentários sociais sobre a saúde mental da mulher negra, Apanhadora de pássaros perde sua força em sua segunda metade devido à narrativa confusa repleta de flashbacks desajeitados, personagens subdesenvolvidos e subtramas descartáveis que poderiam ter sido facilmente removidas e substituídas por ideias mais promissoras e mais interessantes, como aquelas iniciadas, mas nunca aprofundadas.

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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