Ardor intelectual: uma breve resenha de ‘Contra a interpretação e outros ensaios’, de Susan Sontag

Contra a interpretação e outros ensaios (Companhia das Letras, tradução de Denise Bottmann) é a primeira coletânea do gênero de Susan Sontag, sendo este o seu segundo livro – o primeiro foi o romance O benfeitor. Publicado originalmente em 1966, o livro reúne textos escritos entre os anos de 1961 e 1965. 

 

Nos ensaios desta coleção, Sontag se mostra uma grande interessada pelas mais variadas manifestações culturais que se fizeram presentes durante a década de 60. Sem medo de expor suas opiniões, ela provoca, argumenta e aponta o que acredita e não acredita funcionar nas obras e fenômenos que se propõe a pensar. E o faz movida por sua intelectualidade pulsante, se valendo de diversas referências para dar corpo às suas reflexões. Não raro, se desvia do trajeto iniciado em um texto a fim de chegar onde pretende. E não pense que ela o faz por meio de atalhos. Sontag não escolhe caminhos fáceis. 

 

Na obra, vemos uma autora que passeia por temas como literatura, teatro e cinema – dentre outros – com bastante desenvoltura. E, como já mencionado, sem receios de se apoiar em suas posições. Ao falar sobre os Cadernos de Albert Camus, por exemplo, ela argumenta por que o autor é aclamado para além de seus méritos literários. Chegando a dizer, inclusive, que o seu prêmio Nobel fora uma “fatídica honra”. Também encontramos no livro textos que tratam da crítica literária de Georg Lukács, da autobiografia de Michel Leiris, A idade viril, que defende Tristes trópicos, de Lévi-Strauss, que destrincha a ficção científica e que faz uma grande reflexão sobre o julgamento de Adolf Eichmann ao comentar a peça O vigário – só para ficar em alguns dos objetos escolhidos por ela. Entretanto, por mais que a maioria dos ensaios presentes nesta coletânea sejam de grande valor, há três que se destacam: Contra a interpretação, Sobre o estilo e Notas sobre o camp

 

Em Contra a interpretação, Susan Sontag reflete sobre a formae o conteúdo de uma obra de arte e a maneira como lidamos com eles. Ela diz que por conta de um “gesto bem-intencionado”, tende-se a pensar no conteúdo como algo essencial e a forma como acessória. E supor que uma obra de arte é seu conteúdo, é supor que a mesma diz alguma coisa. E focar nessa ideia nos leva ao “perpétuo e sempre inconcluso projeto de interpretação”. Vale ressaltar que, como a própria autora escreve, a interpretação que ela aborda no ensaio não é aquela de sentido aberto, geral, e sim “um ato mental consciente que utiliza determinado código, determinadas ‘regras’ de interpretação”. Aplicada à arte, “a tarefa da interpretação é praticamente uma tarefa de tradução”. A partir disso, Sontag investiga e reflete o complexo da interpretação e suas armadilhas, se valendo de diversos recursos, a fim de expor o porquê acredita que a mesma esvazia a arte e, por consequência, o mundo. 

 

Sobre o estilo, que poderíamos encarar como uma extensão do ensaio citado acima, se inicia com a argumentação de que embora se tente fugir da dualidade forma x conteúdo – pois então já se tornara senso comum o entendimento de que ambas as coisas são indissociáveis  –, na prática o que se vê é o contrário. Segundo Sontag, os críticos têm muita dificuldade em não opor o estilo (ou seja, a forma) a qualquer outra coisa. Isso se dá porque o estilo continua sendo encarado como uma coisa acessória ao conteúdo quando na verdade, ele também é um aspecto formal. Para a autora, mesmo com alguns poréns, “falar do estilo é uma maneira de falar sobre a totalidade de uma obra de arte”. Inclusive, ela defende que por “o conteúdo ser um pretexto que leva a consciência a se engajar em processos essencialmente formais” é que é possível admirar obras cujos conteúdos podem ser condenáveis. Sontag exemplifica: “qualificar O triunfo da vontade e As Olimpíadas de Leni Riefenstahl como obras-primas não é maquiar a propaganda nazista com uma leniência estética. A propaganda nazista está ali. Mas também há ali algo mais que, se rejeitarmos, será em detrimento nosso. Por projetarem os movimentos complexos da inteligência, do encanto e da sensualidade, esses dois filmes de Riefenstahl (únicos entre as obras de artistas nazistas) transcendem as categorias da propaganda ou mesmo da reportagem. Encontramo-nos – com certo desconforto, claro – vendo ‘Hitler’ e não Hitler, as ‘Olimpíadas de 1936’ e não as Olimpíadas de 1936. Pelo gênio de Riefenstahl como cineasta, o ‘conteúdo’ veio – suponhamos que até à revelia de suas intenções – a desempenhar um papel puramente formal”. Para Sontag, uma obra de arte não pode jamais defender coisa alguma. E se algo nela é inevitável, esse algo é o estilo. 

 

Em Notas sobre o camp, Susan Sontag assume a difícil missão de comentar sobre a sensibilidade, que sobre o nome cult de camp, ganha outros contornos. Essa forma peculiar de sensibilidade, argumenta Sontag, tem predileção pelo que não é natural; é esotérica e dentre tantas coisas, transforma o que é sério em frívolo. Ela diz que “as pessoas, na maioria, consideram a sensibilidade ou o gosto como um campo de preferências puramente subjetivas, aquelas atrações misteriosas, basicamente sensoriais, que não foram submetidas à soberania da razão”. Todavia, embora o gosto não tenha sistema nem provas, ele segue alguma lógica. Porém, a autora também diz que escrever sobre o camp é uma forma de traí-lo e para tanto, carece de algo que defenda essa traição: ou é pela edificação ou pelo conflito que ela resolve. Sontag se defende: “quanto a mim, invoco como objetivos da minha edificação pessoal e o espicaçamento de um agudo conflito na minha sensibilidade. O camp me atrai muito e me ofende na mesma medida. E é por isso que quero falar sobre ele, e tenho condições para tanto”. E para ter êxito nesse desafio, a autora opta por 58 notas avulsas em vez de um ensaio convencional, pois acredita que essa é a melhor forma de dar conta de algo tão efêmero. 

 

Contra a interpretação e outros ensaios reúne textos vigorosos de uma pensadora dona de uma curiosidade singular e inata. A versatilidade e erudição encontrados nos ensaios presentes no livro são impressionantes. Sobretudo, se pararmos para pensar que Sontag tinha apenas 31 anos quando a primeira edição deste volume fora publicado. Uma escritora bastante jovem para um repertório tão extenso. Além disso, temos aqui uma autora feroz, absorta por um ardor intelectual que a fez comprar a briga “contra o filistinismo, contra a superficialidade e a diferença ética e estética”, como ela mesma diz sobre si no posfácio desta edição, intitulado Trinta anos depois… Susan Sontag foi uma crítica original e fervorosa. Sua paixão pela arte, e consequentemente, a sua defesa por uma “erótica da arte” não a impediu de encontrar valor naquilo que era julgado como uma cultura popular, e portanto, inferior. Ela se permitia à sensibilidade. E com isso, enfrentava o moralismo em prol de uma fruição honesta. Para Sontag, o gozo estético era o que mais importava e nada deveria limitar o nosso encontro com ele. 

 

*Exemplar recebido em parceria com a editora.

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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