Arizona Baby

Texto por vvilliam // Lenny

“Every time I find myself I feel so lost

And every truth that I discover feels so false

And every mountain that I climb that seemed so tall

It only felt that way ‘cause the valley was so small

Excuse me while I cry”

Kevin Abstract em “Baby Boy”¹

 

 

O universo do rap/hip hop foi, desde sempre, um berço de grandes artistas que usavam suas vozes para escancarar a violência e o racismo enfrentado no seu dia a dia. “Fuck tha Police” foi lançada em 1988 e infelizmente, a cada semana desde então ela continua mais atual do que nunca.

 

Infelizmente, porém, grande parte dos artistas desse universo também usa o seu talento para escrever letras banhadas na homofobia, misoginia e transmisoginia (obrigado, Julia Serano). É quase como se fosse um círculo vicioso, pois para se proteger da violência diária enquanto suas personalidades são formadas eles precisam “virar homem” e “não ser um maricas”, e acabam absorvendo o ódio em sua volta e desenvolvem essa masculinidade tóxica e homofóbica na vida adulta, os privando de nuances e delicadezas.

 

Arizona Baby, 2018

É por isso que temos que exaltar quando um artista que cresceu em uma comunidade cheia de preconceitos se sente à vontade para ser abertamente quem ele é, e principalmente, quando esse artista consegue quebrar a barreira do hip hop mainstream e heterossexual. Abstract escreve sim sobre racismo e violência policial, mas suas letras ganham profundidade e geram mais visibilidade por causa da intersecção entre racismo, depressão, traumas e homofobia. Ele canta sobre sua infância difícil, sobre sua incapacidade de ser quem ele é em um ambiente familiar homofóbico e hostil, e até mesmo sobre sua homofobia internalizada.

Faça um rápido exercício de memória: quantos rappers homens você já escutou cantando abertamente sobre seus relacionamentos com outros homens? Com seus namorados? Em “Big Wheels” ele dispara: “i’m a power bottom”², e na mesma música ele canta: “Tell my baby I want him to keep me up when we fussing/Under the sheets where we touching”³. Em “Joyride” ele se mostra preocupado com o futuro de sua relação: “How do you cope without a rope? Me and my boyfriend, we lookin’ for hope” . É um frescor ver letras como essa porque sabemos que em sua esmagadora maioria, os artistas do mundo do hip hop hétero cantam sobre como “as mulheres são umas vadias”, ou como eles possuem um pau enorme e uma garagem cheia de carros de luxo.

Portanto, quando artistas como Kevin Abstract, Frank Ocean, Lil Nas X e (pasmem!) Tyler, the Creator se mostram vulneráveis e tridimensionais em seus sentimentos, e dão visibilidade ao amor entre dois homens, os jovens que se encontram, e eventualmente se encontrarão na mesma situação de seus ídolos, se sentirão abraçados e reconhecidos como seres com sentimentos reais, e assim, orgulhosos de sua sexualidade, gerando, desse modo, uma nova geração de homens não tóxicos e mais sensíveis.

 

Notas

¹”Toda vez que eu me encontro me sinto tão perdido

E toda verdade que eu descubro parece tão falsa

E cada montanha que subo parece tão alta

Só me senti assim porque o vale era tão pequeno

Com licença enquanto eu choro”.

² Power bottom: na maioria das vezes, um homem passivo, que no ato sexual é quem geralmente dá as ordens.

³ “Diga ao meu bebê que eu o quero, ele me mantém acordado quando nós nos confundimos

Sob os lençóis quando tocamos”

 ⁴ “Como você lida sem uma corda? Eu e meu namorado,

estamos nos esforçando por esperança”.

 

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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