As coisas humanas – Lya Luft

Texto por Mayra Guanaes

 
Foi publicada recentemente uma entrevista em que a escritora de 81 anos, Lya Luft dizia ter se arrependido de ter votado no presidente Jair Bolsonaro. Parte do público reagiu a essa entrevista com algum espanto, outra parte, nem tanto.
Fato é que o livro As coisas humanas, último lançamento da autora, já havia chegado para mim e já estava esperando a minha leitura e minha resenha crítica. E por isso compartilho minhas impressões aqui.
A capa de As coisas humanas me chamou a atenção na lista dos livros que eu poderia escolher e Lya Luft era a única autora mulher da lista. A edição ficou mesmo muito bonita com a imagem de um mar azul, com ondas, a capa e contracapa impressa com textura, muito gostosinha de passar a mão, mas infelizmente, não posso dizer o mesmo da leitura.Talvez por que eu faça esta leitura como uma professora, pesquisadora e crítica do meu tempo? Talvez.
Lya Luft dedica As coisas humanas para o filho que morreu no mar. Foi isso que me chamou a atenção na sinopse, entretanto, esta é uma parte que aparece muito pouco no livro, bem como o tema da morte.
As coisas humanas apresenta uma série de textos pessoais em que a autora escreve sobre algumas memórias e também dá opinião sobre vários assuntos. Não sinto que conheci, com este livro, um pouco da literatura de Lya Luft, mas sim o que a escritora pensa a respeito de várias questões sociais e políticas. É aí é que está o meu desconforto.
A ficção, muitas vezes, consegue mascarar alguns aspectos de quem a escreve, mas como este livro não estabelece um pacto ficcional, não há máscaras.Ao escrever em primeira pessoa e optar pela própria pessoalidade nos textos, Lya Luft expõe todo o seu lado reacionário. Ao longo do livro, torna-se bastante compreensível que ela tenha votado no Jair Bolsonaro. A afinidade de ideias entre ambos está evidente nos textos de As coisas humanas.
Eu não tive vontade de pesquisar a fundo a biografia da autora, mas por essa leitura fico com a impressão de que se trata de alguém que faz parte de uma parcela bastante privilegiada da população, que não consegue enxergar além dos próprios privilégios. Inclusive, ela mesma diz “vamos ficar no individual, pessoal” (p.188).
Neste livro mais recente, Lya Luft muitas vezes se coloca dizendo que não se interessa em discutir política, que prefere ficar tranquila. Ainda assim, no livro temos algumas referências às questões políticas e sociais em trechos como “meninos criminosos tratados como crianças” (p. 49), “As chamadas cracolândias existem não só por responsabilidade daqueles, quase lixo humano” (p. 61) e “me espanta como é possível que mulheres não débeis mentais nem fisicamente suportem companheiros que ano após ano, dia após dia, as maltratam” (p.169). O curioso é que na página 269, temos um texto que descreve um policial e a humanidade presente nele, nos perigos que ele corre em seu trabalho. Parece que a empatia de Lya Luft é um tanto seletiva.
Eu não vou me estender e reproduzir aqui todos os trechos deste livro que me deixaram boquiaberta, com base na leitura, no entanto, posso dizer que considero As coisas humanas uma leitura indigesta para quem compreende minimamente a história do nosso país e as desigualdades sociais que dele fazem parte. E eu diria que este livro são comentários a respeito destes temas.
Na metade do livro, Lya Luft se reconhece como uma mulher de seu tempo. Talvez por isso, As coisas humanas, no meu ponto de vista, parece nos mostrar algumas ideias que no tempo em que vivemos podem já estar ultrapassadas.A autora também comenta muito sobre pessoas que romperam a amizade por causa de questões ideológicas.

 

Lya, eu sinto muito, mas depois de As coisas humanas também fiquei com dificuldade de continuar dialogando com você.
 
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21 respostas

  1. Maria, deixo aqui minha admiração, eu certamente não realizaria a leitura inteira ao me deparar com o primeiro ataque. mas também aprendi que para fazer a crítica, precisamos conhecer o mínimo do conteúdo. certamente Lya não estará em minhas listas de desejo

  2. Gostei do seu texto. No entanto, discordo de um ponto: talvez, realmente, a autora seja uma mulher do seu tempo. A consequência disso é termos um Brasil tão desigual e um presidente abominável.

  3. Gostei do seu texto. No entanto, discordo de um ponto: talvez, realmente, a autora seja uma mulher do seu tempo. A consequência disso é termos um Brasil tão desigual e um presidente abominável.

  4. Imagino como foi indisgesta a leitura,que bom que pelo menos ela está arrependida de seu voto,mas é interessante observar que o arrependimento não vem de suas opiniões e posicionamentos, a autora se mostra mais uma pessoa privilegiada que só se incomoda com as atitudes do governo quando afetam a ela.O nome da autora é conhecido nunca li, e depois desse post não pretendo,a elite branca brasileira como sempre olhando apenas pro próprio nariz.

  5. Nossa, de cara eu jamais compraria o livro. Para mim, seria aquela leitura que largamos logo no início ou no meio, sei lá pesquisando o nome da autora já não compraria. Como você disse no fim da resenha Maria, impossível manter diálogo com quem tem opiniões tão seletivas e reacionárias.

  6. Poxa,eu já tinha ouvido o nome dessa autora também,como as colegas acima. Mas depois desta resenha prefiro não me aprofundar. Acredito que aprendemos muito com os livros e,nesse caso,reiteramos o conhecimento que já possuímos sobre o que pensa a nossa elite.

  7. Lendo a sua crítica acho muito importante conhecermos diferentes pontos de vista, porém, só fico pensando nas pessoas que não tem um referencial e acabam levando essas opiniões como a da escritora como verdades. Acredito que essas verdades só servem para perpetuar um pensamento fechado e nada transformador.

  8. Oii, Mayra
    eu li um único texto da Lya Luft que o profe passou na faculdade e não achei nada de mais.
    Não conhecia ela e nunca procurei saber.
    Mas esses dias vi o povo se indignando dela ter votado no bozo. Vou te dizer, se antes eu não tinha interesse nela, agora menos ainda!
    Pela sua resenha deu pra ver o quão grosseira ela é!
    Então, pra mim, não faz sentido gastar dinheiro comprado algo de quem apoia fascismo.
    bjs

  9. Nossa, tô surpresa. Confesso que não li nem pretendia ler nada dela (simplesmente nunca me interessou). Só a conhecia de nome. Mas acho que o "choque" que as pessoas sentem é pq ela é escritora. Ela é do campo das artes, então todos supõem que juntamente com atores, cineastas, músicos, artistas plásticos etc, ela seria contra alguém que se mostrou desde o início ignorante e detentor de desprezo pela cultura como um todo. Isso só mostra o quão alienada de tudo ela é, inclusive dos meios que possibilitam o florescimento e desenvolvimento da profissão dela e onde se encontram os consumidores do que ela vende (livros). É algo completamente contraproducente, como mulher que se diz antifeminista. Mas é isso né? Já tá idosa e com a vida ganha. Eu não compro nem leio nada dela e vida que segue.

  10. Fiquei triste lendo este post… Acho um pouco decepcionante a gente ler esse tipo de coisa, mas só lendo pra saber, né? Acho bom ler e tirar suas próprias conclusões, mas não vou gastar meus dinheirinhos com esse livro =/ Vou me guiar por este post.

  11. Não sei se eu conseguiria ler esse livro. Me angustia que as pessoas ainda se pautem de forma tão desumana, que façam uso dos seus achismos como se fossem verdades universais, sem perceber o que suas ações podem causar no próximo.
    Amei a resenha porque me fez pensar que é menos uma possível leitura de um livro ruim na minha vida rsrs

  12. Acho que vi algumas pessoas falando sobre o posicionamento dela, e não tive nenhum interesse. Depois desse texto quero ainda mais distância. Que meu curto dinheirinho seja gasto com autoras que tenham uma visão mais crítica sobre a sociedade em que vivemos

  13. Conseguir entender o porquê da sua indigestão com os trechos que você citou no texto Mayra! Não havia lido nenhuma obra da Lya e agora não tenho vontade alguma de conhecer pra ser sincera… Confio nas indicações da impressões de Maria e vou me poupar de ler esse livro. :/

  14. Honestamente, eu tenho uma certa tendência a ignorar criadores de conteúdo que sejam contrários as minhas preferências política (quando sei quais são) mas eu sinto que devo ler esse livro…

  15. Não li ainda, mas vou ler. Admiro a escritora apesar de não concordar com muitas propostas dela. É de carne e osso, é verdadeira. É como amigas e amigos meus – divergente – e pra mim isso é importante. Me faz pensar.

    1. Perfeita sua colocação Lacy. Já li o Tigre na Sombra, ótimo livro. Quanto a opinião, cada um tem a sua, algumas ásperas como essa crítica da Mayra e outras respeitosas. Faz parte!!!!

  16. Eu gosto da escritora Lia Luft. Aprecio -a como profissional, como mulher, como pessoa humana observadora do mundo. E por ser pessoa pública, sujeita a críticas pelo que escreve. Mas ela pode! Penso que faltou um pouco de sensibilidade aos críticos de carteirinha… Já li tanta coisa bonita que Lia escreveu… Ela pode !

  17. Dizem que a prática da leitura abre as mentes e cria na pessoa que lê habilidades cognitivas importantes para viver melhor. E então encontramos uma escritora renomada que deposita a sua confiança em um nazifascista votando nele para presidente da República!!!!

    Ora, escrever profissionalmente, como sempre fez a escritora em questão, deve pressupor leitura não só de palavras, mas também de mundo. Portanto, como conciliar a verdade de que a leitura expande nossa percepção desse mundo com o fato de que uma autora de livros (muitos livros) votou em um monstro???

    Talvez a resposta passe pelos conceitos do que chamamos de ideologia política… Pelo amor de G-Zuis!!! Será mesmo que os valores e preferências do grupo social a que esta senhora pertencia (morta há 7 horas) eram tão fortes, que embotavam sua consciência do mal que estava cometendo? Parece que a resposta é, infelizmente, sim.

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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