O aspecto cinematográfico da autobiografia de Assata Shakur

“Ninguém no mundo, ninguém na história, jamais conseguiu sua liberdade apelando para o senso moral das pessoas que os oprimiam” – Assata Shakur.

Meu nome é Assata Shakur (nome de escravizada JoAnne Chesimard) e eu sou uma revolucionária

Publicada em 1988, Assata: An Autobiography (Assata: Uma Autobiografia) nos causa revolta e euforia. Ficamos revoltados devido ao racismo sofrido pela autora não apenas em sua infância e formação, mas principalmente ao enfrentar a corrupção de instituições historicamente racistas, como a polícia, o sistema judiciário americano, a CIA, o FBI, e por último, o COINTELPRO: programa usado para caçar e marcar como terrorista qualquer pessoa ou organização que o FBI considerasse subversiva: membros do movimento pelos direitos civis, o movimento black power, grupos feministas, comunistas e anti-guerras, etc. A lista é enorme. A euforia, por outro lado, ocorre imediatamente já no primeiro parágrafo devido ao aspecto cinemático de sua autobiografia: ao escolher começar sua história in medias res (ou seja: nos jogando no meio da ação) minutos após o tiroteio em que fora alvejada no peito e no ombro, não nos resta outra alternativa a não ser consumir o livro o mais rápido possível.

Rodovia onde ocorreu o tiroteio

Entretanto, existe uma ruptura da ação desenfreada do primeiro capítulo, pois a autora decide optar pela não linearidade. Logo, os capítulos alternam-se entre o presente, quando a autora escreve (do futuro) sobre sua prisão, recuperação, os vários tipos de tortura sofridos — ainda no hospital, inclusive, minutos depois de ser socorrida —, sua gravidez na prisão (e a pressão dos médicos racistas e eugenistas para que ela abortasse, pois essa “seria melhor opção para todas as partes”) e seus vários processos (em três ela fora absolvida, e em outros três o julgamento nem foi necessário devido à falta de provas); e o passado, quando somos apresentados ao desabrochar da pequena JoAnne Deborah Chesimard, à precariedade de sua escola, sua fuga de casa, seu processo de radicalização e encontro com as raízes da cultura negra, e por conseguinte, o abandono dos produtos químicos para alisar os cabelos, sua mudança de nome para Assata Olugbala Shakur, bem como seu envolvimento, descontentamento e seu abandono dos Panteras Negras, tendo, aliás criticado a falta de ordem e o sexismo dentro da organização. Vale lembrar que os Panteras Negras também eram criticados pelo tom homofóbico de alguns de seus membros. Comportamento que só começou a mudar após o famoso discurso de Huey P. Newton contra a opressão às mulheres e aos gays.

Huey P. Newton (créditos: iloveancestry)

Sem surpresas — até para servir como uma espécie de porto seguro, ou alívio dos horrores descritos por Assata na prisão — as partes contendo humor encontram-se em sua maioria nos capítulos sobre seu crescimento, em suas fugas da casa da mãe. Em determinado momento, por exemplo, após fugir de casa aos 13 anos, a jovem JoAnne é ajudada por Shirley, uma mulher negra belíssima, vestida para matar (nas palavras da própria autora), muito alta, com muita maquiagem e de cílios postiços. Na manhã seguinte ao ir agradecer pelo jantar da noite anterior, Assata (e nós, os leitores) é surpreendida quando Shirley abre a porta desmontada e se barbeando. Shirley era uma Drag Queen. Esses momentos de humor são imprescindíveis devido à quantidade de denúncias graves acerca da cultura do estupro, racismo internalizado, a solidão da mulher negra (“o homem negro internalizou a opinião do homem branco acerca das mulheres negras” posição 2289), o racismo institucional das escolas americanas (“as escolas que frequentamos são reflexos da sociedade que as criaram. Ninguém vai lhe dar a educação que você precisa para derrubá-los.” posição 3399), e perseguição policial e política.

Eu sou uma revolucionária e, como tal, sou vítima de toda a ira, ódio e calúnia de que a Amerika é capaz

Para podermos ter noção de quão desprovidos de humanidade eram os envolvidos em condenar Assata antes mesmo do julgamento, são cruciais os momentos em que a autora relata os vários tipos de tortura sofridos por ela, como podemos notar no sadismo imediato demonstrado pelos socorristas (que supostamente deveriam fazer de tudo para que ela conseguisse sobreviver, mas que continuamente ficavam mandando o motorista da ambulância retardar a ida ao hospital, na esperança de que ela morresse de causas naturais), mais tarde pelos policiais que a torturavam física e emocionalmente (constantemente apontando suas armas em sua direção e apertando o gatilho) enquanto ela estava algemada no leito do hospital. Já na prisão, os médicos racistas faziam de tudo para que ela não recebesse os tratamentos indicados pelo seu médico pessoal. Vale ressaltar que assim como foi feito com Angela Davis e com a atriz Jean Seberg (e dezenas de outros envolvidos com os Panteras Negras), o FBI tinha como missão transformar Assata em uma terrorista, chegando inclusive a espalhar vários pôsteres falsos com sua foto pela cidade. Com isso, o FBI queria condenar Assata aos olhos da sociedade antes mesmo do julgamento.

Créditos: The Mirror

Apesar de Assata: An Autobiography ser um livro fascinante, devo acrescentar alguns detalhes que podem ser considerados como pontos negativos, ainda que muitos deles possam ser facilmente justificáveis. Vejamos, por exemplo, sua fuga da prisão: Assata não fornece nenhum detalhe de como ela escapou, se obteve ajuda dentro ou de fora da prisão, onde ela ficou até ressurgir em Cuba cerca de 5 anos depois, já como exilada política. Isso, claro, pode ser entendido como um modo de proteger os membros do Exército Negro de Libertação — Black Liberation Army (responsáveis em orquestrar sua fuga), e se no começo do texto escrevi que a autora acertadamente começa a contar sua vida in medias res, ainda que a escolha tenha sida positiva, o modo proposital com que Assata prefere deixar momentos chave de sua vida de fora do livro, como por exemplo, o motivo para ela estar no meio de um tiroteio com a polícia, pode fazer com certos leitores acabem considerando a autobiografia incompleta, pois momentos cruciais que poderiam ser considerados como um clímax são deliberadamente esquecidos pela autora. Me parece frustrante o fato de precisarmos recorrer a outras formas de informação para preencher as lacunas deixadas por Assata.

Como todos os outros revolucionários negros, a América está tentando me linchar

Em última análise, Assata: An autobiography é um livro extremamente relevante nos dias atuais, visto que o perfilamento racial, que para muitos foi o motivo pelo qual o carro em que estavam Assata, Zayd Shakur e Sundiata Acoli (todos negros) acabou sendo parado pela polícia, com a desculpa de um farol quebrado, é sistematicamente usado até os dias atuais para que corpos negros acabem como estatística no imenso Complexo Industrial-Prisional. Vale ressaltar que hoje em dia Assata ainda é procurada pelo FBI, que a classifica como uma das 10 terroristas mais perigosas do planeta. A recompensa pela sua captura em 2005 era de dois milhões de dólares.

Assata Shakur e sua filha, Kayuka Shakur em Cuba (créditos @blkmktvintage)

Aproveitando o lançamento de filmes como “Seberg”, de 2019; a cinebiografia de Angela Davis ainda em produção; Mangrove, de 2020, dirigido por Steve McQueen; “Uma Noite em Miami”, de 2020, dirigido por Regina King; e “Judas e o Messias Negro”, de 2021, seria uma boa surpresa se nomes como Ava Durvernay (“Selma”), Nia DaCosta (“Capitã Marvel 2”), Kasi Lemmons (“Harriet”) ou Dees Rees (“Mudbound”) fossem chamados para adaptar a história de Assata Shakur nos cinemas, pois como foi dito acima, ela possui material suficiente para algo épico, de preferência nos moldes de “Malcolm X”, obra-prima de Spike Lee.


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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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