Não se deixem enganar pela linda capa rosa que passa a impressão de que neste livro teremos uma história bonitinha, porque de bonitinha só temos a capa mesmo. Quanto mais se avança na leitura mais se conhece personagens submersos em variadas camadas e complexidades psicológicas, se descobre uma Jamaica que vai além da conhecida pelo turismo.
Livro de estreia da autora jamaicana radicada nos Estados Unidos, Bem vindos ao paraíso é dividido em três partes, nas quais é possível acompanhar por meio de uma narrativa em terceira pessoa a vida das personagens que vivem em Montego Bay, na Jamaica.
Margot é a principal, uma mulher negra que trabalha como recepcionista em um importante hotel da região e adapta-se para ser bem aceita nesse espaço: “Ela se veste muito bem para trabalhar, seu uniforme marrom acinzentado é passado com capricho, cada prega alinhada cuidadosamente; seu cabelo é alisado e penteado em um coque bem arrumado, não há um fio fora do lugar exceto os que e, que são assentados com gel para dar a impressão de cabelo bom; e sua maquiagem é uma perfeição minuciosa, com pó suficiente para que pareça mais clara do que é; uma criada de luxo” (p.18). Todos pensam que o hotel paga um bom salário, mas a verdade é que enquanto espera subir de cargo, Margot faz horas extras se prostituindo para os hóspedes do hotel, que vão fazer turismo sexual, em busca de uma imagem estereotipada de mulher negra jamaicana.
Margot vive com a mãe e a irmã mais nova em uma casa alugada na zona periférica da cidade. Delores não é a melhor das mães, trabalha muito para conseguir vender produtos para turistas, pensando no futuro da filha mais nova e na manutenção da casa. Thandi, por sua vez, é uma adolescente que é vista como a salvação da família, uma vez que a irmã e a mãe trabalham e fazem o possível para pagar seu colégio particular. Então sob ela recai a pressão de ir bem nos estudos porque só assim teria alguma chance de ter um bom futuro e consequentemente tirar a família da miséria em que vivem, no entanto, ela tem seus próprios interesses, que não são os mesmos que os da mãe e irmã.
Essa é uma família totalmente desestruturada, vamos aos poucos entendendo a origem de seus problemas e vemos que essas três mulheres vivem seus próprios dramas pessoais, advindos de um histórico de violência cíclica que confere estragos irreversíveis na forma como se relacionam entre si e como atuam no mundo.
A autora Nicole Dennis-Benn/ Foto Jason Berger |
As horas extras feitas no hotel não são o único segredo que Margot esconde da família e da sociedade: ela tem um relacionamento afetivo com outra mulher, Verdene, algo considerado muito grave porque os relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo são totalmente abominados nesse país.
Thandi também possui os seus segredos, um deles é que ela faz tratamento para clarear a pele porque assim acredita que conseguirá ser melhor vista socialmente.
Algo que o livro faz muito bem é nos mostrar uma Jamaica sem idealizações, que não se importa de derrubar casas para a construção de resorts de luxos com o objetivo de aumentar o turismo na região, uma Jamaica ancorada nos mais diversos tipos de preconceitos, baseados na cor, na classe e principalmente na intolerância à relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo. Essa imagem de Jamaica real também é transposta por meio da linguagem empregada pela autora nos diálogos, evidenciando o modo de falar dos jamaicanos ao mesmo tempo que diferencia as classes sociais por meio do patoá jamaicano, que é uma mistura do inglês com idiomas africanos e um pouco de espanhol.
Neste sentido, a tradução brasileira feita por Heci Regina Candiani merece reconhecimento porque não deve ter sido muito fácil transpor para o português brasileiro. Vejamos alguns exemplos de falas: “(…) ¾ É tão ruim assim? A gente bibe perto du mar. Quantas pessoas podem dizê isso? Tem qui agradecê” (p.53); “(…) Cê acha qui os homem quer uma minina negra pra dar os braço em público? Ele ti quer pra foder. Não pra casar” (p.139); “Aprendi o valor de ganhar dinheiro. É o único jeito da gente sobreviver. I mesmo si o dinheiro não pode comprar tudu, como classe i bom senso, pode comprar aceitação. É quando as pessoas ti dão atenção, ti aceitam como cê é. Cê pode ser meio burra ou feia como um camundongo, mas cada homem, cada mulher e cada criança ti respeitariam com um poco di dinheiro na tua carteira” (p.159). Nos dois últimos trechos selecionados, além da linguagem também podemos observar outras reflexões provocadas pelo livro, primeiro a respeito do que se espera da mulher negra jamaicana e da importância do dinheiro para pessoas na mesma situação da família de Margot.
*Exemplar enviado pela editora para leitura com o Clã das Pretas.
2 respostas
Caramba, a leitura deve ser muito interessante – e nada tranquila! Fiquei aqui pensando porque só pela resenha já deu pra ter noção dos debates que o livro levanta.
Meldels, gente, esse livro. Que porrada, que leitura. Indico pra meio mundo sempre que posso, foi uma das melhores leituras do ano. 🖤