Travessia: a vida de Milton Nascimento (Record), biografia escrita por Maria Dolores, é como uma jornada de afetos e de diferentes sabores que foi e ainda é pautada no amor e traz a emocionante trajetória do artista brasileiro que preenche o imaginário nacional de melodias e letras que grudam na pele como abraços quentes e demorados.
Neste livro conhecemos a história de Milton Nascimento, também conhecido como Bituca, de forma minuciosa, desde seu início até os tempos atuais. Milton, um garoto que foi adotado por pais brancos muito amorosos, que diferente do que se tinha na época, não queriam explorá-lo. Foi um garoto muito sortudo por ter uma família que potencializava suas intenções e sentimentos em uma época em que o racismo imperava de maneira muito mais violenta e excludente.
O traçado narrativo que autora faz é tecido por meio da minúcia inegável dos materiais e documentos históricos, que foram a base para a composição do texto. No decorrer da leitura é possível observar claramente como o embasamento do contexto histórico é forte na construção do texto, que vai desde o local de nascimento de Bituca até quando sua arte ganha os palcos do mundo.
Diversas histórias pessoais são expostas no livro, desde sua intimidade até elementos que fomentaram seu crescimento e materializaram significados reais para as letras de suas músicas e para a obra que se encontra de livre acesso para os seus admiradores. A criança negra que nasceu no Rio de Janeiro, mas que foi criada na cidade de Três Pontes, em Minas Gerais, ganhou o mundo com a doçura de sua existência, o que, para um homem negro de sua época, o tornava alvo de diversos tipos de racismos que trouxeram muita dificuldade para acessar espaços em que pudesse expressar seu talento.
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Ao expor o lugar de artista e ícone nacional, é inegável que o material composto pela autora reúne o que há de mais visceral na trajetória de Milton Nascimento. Existe um compromisso muito evidente com os fatos que são contados, uma vez que a autora fez mais de setenta entrevistas, além de todo amparo de artigos, revistas e jornais que buscou para a construção do livro. Sua escrita remete a uma estética cinematográfica em que se consegue imaginar o passado partindo do futuro, suas descrições são profundas e extremamente comprometidas com o que há de mais verdadeiro no histórico dos lugares que descreve e das pessoas que introduz no texto.
Ainda que seu caráter documental seja de excelência, me pergunto qual é o tato existente para que questões raciais sejam retiradas da ótica única do “preconceito” para uma fuga efetiva da superficialidade em nomear o racismo. É possível encontrar passagens como: “Bituca precisou enfrentar pela primeira vez o preconceito pela cor” ou “Talvez alguém tivesse preconceito, mas se isto tivesse acontecido, não se manifestou” e a partir disso me surgem várias dúvidas, levando em conta que a escritora é brasileira e se comprometeu com a escrita biográfica da história de um homem negro. Acredito que precisamos fomentar uma linguagem que nomeie de forma mais assertiva questões que precisam ser mais amplamente debatidas, principalmente vindo de escritores brancos, uma vez que o racismo não foi criado por pessoas negras. É preciso que pensemos em uma comunicação que atravesse bolhas e que não tenha medo de entender seus lugares de poder.