Nos deixe chover no molhado: Cidinha da Silva é um dos nomes mais importantes da crônica brasileira. Não é novidade, esta é a sua fama. Apenas somos parte do coro. E fazemos questão de reforçar isso porque, mais uma vez, ela não nos permite esquecer. Vamos falar de relações raciais? (publicado em 2024 pela Autêntica) é coletânea que vai direto ao ponto ao remexer as vísceras de questões tão caras e ainda carentes de debates sérios. Seu ponto de vista, como de costume, é sempre bem vindo.
Não. Não é que não exista discussões em torno dos assuntos trabalhados por Cidinha no livro. Há, sim. Mas a necessidade de ainda se debater tais pautas e, sobretudo, levá-las com rigor, ainda se faz atual — o que deveria chocar, mas não surpreende ninguém. E não é que os temas das crônicas presentes nessa reunião seja novidade na carreira de autora. Pelo contrário: o cerne deles é um dos grandes objetos do seu projeto literário. Mas a organização aqui, o tom, o foco mais acentuado, faz com que Vamos falar de relações raciais? tenha uma dinâmica talvez mais militante do que o de costume de outras de suas coletâneas. E esse toque é mais uma coisa a dar força à obra, para além daquela advinda dos próprios textos, é claro.
Ao todo, são vinte e sete crônicas que mostram toda a versatilidade e repertório de Cidinha da Silva. A maneira como ela transita com desenvoltura por assuntos tão diversos só reafirma a percepção que não vem de hoje a respeito dela ser uma excelente comentarista social, se voltando com seriedade até quando o foco da prosa não parece exigir tal entrega. Para ela, tudo merece ser tratado com o devido respeito. Afinal, para que a escritora se preocuparia em dar forma às suas ideias se fosse de outro jeito?
O livro abre com um texto que trata do colorismo. Assunto que ganhou grande destaque nos debates — sobretudo, virtuais — brasileiros, mas que, com razão, merece o questionamento crítico que a autora faz. Quando ela pergunta se isso faz sentido no Brasil, não poderia ser mais óbvia: precisamos pensar em raça a partir do nosso país, não dos Estados Unidos. E isso ainda se desdobra, mesmo que brevemente, na crônica seguinte, quando ao falar da grandeza de Angela Davis, “uma mulher comunista cuja radicalidade foi transformada em insumo de uma imagem popstar para consumo volátil e instantâneo da plateia da vez”, nos lembra, a partir da própria Davis, que este é o país de Lélia Gonzalez. Nosso território, nosso chão, importa. E não é de hoje que, explícita ou implicitamente, a autora bate nessa tecla.
E como já é de praxe, Cidinha da Silva, com firmeza e agudeza, não deixa que acontecimentos violentos e, portanto, importantes, sumam de nossa memória coletiva e passem em branco. É o que faz, por exemplo, com o caso do menino Miguel, de apenas cinco anos, que morreu por conta do descaso e desprezo de Sari Gaspar Corte Real, patroa de sua mãe, Mirtes, que ao estar responsável pela criança, a deixou por si só, mandando-a em busca da mãe, que havia saído para levar o cachorro da família para passear, resultando na sua queda de um altura de trinta e cinco metros. Caso escandaloso, que tomou conta da mídia nacional na época, sendo reflexo do racismo à brasileira, e que no fim das contas acabou ocasionando apenas uma vítima sem responsabilidade real e prática para quem cometeu o crime. Há outros casos no livro.
É importante dizer que também há espaço para outras histórias em Vamos falar de relações raciais?. Assim como enfia o dedo em feridas abertas, Cidinha da Silva também celebra o que há de ser celebrado. É o que acontece em “Tardes negras na Paulista”, no qual comenta as exposições a respeito de Sueli Carneiro, no Itaú Cultural, e Carolina Maria de Jesus, no Instituto Moreira Salles, ambas na Avenida Paulista. É o que também acontece em “Michelle e Obama”, crônica que versa sobre o amor público entre o ex-presidente estadunidense e a ex-primeira dama. Um símbolo que nos lembra que, sim, a mulher negra merece ser amada.
Vamos falar sobre relações raciais? é um instrumento importante para uma formação crítica ante o racismo. Talvez o livro mais professoral de Cidinha — não sabemos se tal percepção é influenciada pelos blocos “Vamos conversar mais?”, ao final de cada texto, assim como os QR codes que levam para materiais fora da economia deles, ambas as coisas contribuindo para a expansão dos debates propostos, ideais para contextos como o da sala de aula. Política, assim como a autora sempre foi, a coletânea condensa as melhores qualidades da escrita de Cidinha da Silva com um direcionamento mais combativo. Movimento sempre admirável de uma autora que nunca se colocou em cima do muro.