Claudia Rankine aponta microagressões raciais em “Cidadã: Uma lírica americana”

“Como é difícil para um corpo sentir a injustiça lançada ao outro.” – Claudia Rankine

Ao escrever sobre Não digam que estamos mortos, deixei claro tratar-se de um livro urgente e necessário, que dialogava com assuntos atuais como identidade de gênero, violência policial e o movimento Black Lives Matter. Lá Danez Smith também usava o assassinato de jovens negros até o ano de 2014 como base para seus poemas raivosos. Coincidentemente, 2014 também foi o ano da publicação de outro livro que, talvez intrinsecamente ligado ao movimento BLM, e através de uma intersecção de temas, aborda quase os mesmos tópicos escritos por Smith, mas de uma forma totalmente diferente: Citizen: An American Lyric.

Cidadã: uma lírica americana (publicado em 2020 pela editora Jabuticaba, e com uma tradução impecável de Stephanie Borges) é uma poderosa simbiose de poemas e ensaios de não ficção baseados na sua experiência pessoal e em depoimentos de amigos. Os textos muitas vezes parecem se tratar de monólogos internos em que a autora nos questiona de forma imperativa sobre a nossa passividade diante das injustiças políticas, sociais e raciais sofridas por grupos minoritários aos quais não estamos intrinsecamente ligados. Usando as microagressões raciais e a violência policial enfrentada pela população negra nos Estados Unidos — nessa sociedade que muitos brancos costumam classificar, certos de que sua falácia será aceita como verdade, como uma realidade pós-racial —, a autora analisa uma variedade de situações relacionadas ao racismo enquanto direciona a atenção do público branco para a raiz do problema: seu próprio privilégio e sua incapacidade de se reconhecer como o causador do racismo.

Ainda que classificado como poesia, eu, particularmente, o entendo como um livro de ensaios com eventuais poemas. Todos eles — é importante ressaltar —, são escritos pela autora sem nenhum processo de diluição. As palavras de Rankine são o retrato da realidade que ela vive e se propôs a escrever. Em seu texto encontramos cápsulas de um tempo que teima em não ficar no passado: vizinhos brancos que chamam a polícia ao ver um homem negro que estava trabalhando na casa ao lado. Citando Zora Neale Hurston (“Eu me sinto mais negra quando jogada contra um fundo extremamente branco”), Rankine analisa o tratamento obviamente enraizado no racismo sofrido por Serena Williams (tenista multicampeã em um esporte em que atletas brancos são o lugar-comum) nas mãos da mídia norte-americana através dos anos — e como atletas homens com o mesmo comportamento que o dela não recebem o mesmo tipo de tratamento; a funcionária branca da caixa registradora que questiona a legitimidade do cartão de crédito do cliente negro sem fazer o mesmo com os outros clientes brancos que estavam na fila. Os exemplos são infinitos. A autora direciona nossa atenção às situações diárias praticamente invisíveis — exceto para os que sofrem — e para o privilégio branco que nos permite presenciar atos de racismo e seguir com as nossas vidas como se nós não fôssemos parte do problema.

Créditos da fotografia: Ricardo DeAratanha

“Porque homens brancos não conseguem policiar sua imaginação pessoas negras estão morrendo.” (p. 147)

Como escrevi no início desse texto, Cidadã: uma lírica americana era terrivelmente atual em 2014 e continua atual em 2021. Pessoas brancas — ou pessoas socialmente lidas como brancas — que se consideram antirracistas precisam parar de se esconder atrás de seu privilégio e arregaçar as mangas quando testemunharem algumas dessas situações que a autora chama de racismo invisível, porque se continuarmos em silêncio estaremos simplesmente trabalhando em conjunto com essa (in) justiça enviesada que não penaliza quem comete esses crimes.

Em um livro repleto de pontos altos, o que fica carimbado na nossa mente são os momentos em que Rankine escreve ensaios dolorosos como aquele em que um homem narra sua própria batida policial: “Você não é o cara e ainda sim você bate com a descrição porque existe apenas um cara que é sempre o cara que bate com a descrição.” (p. 117); e ao relembrar os nomes de pessoas negras assassinadas pela polícia racista norte-americana nos últimos anos. Podemos, aliás, trazer essa discussão pra o nosso país, uma vez que de acordo com uma pesquisa de 2020, 75,4% das pessoas assassinadas pela polícia brasileira eram negras. Se em determinado momento a autora homenageia os jovens americanos que tiveram suas vidas terminadas graças ao racismo sistêmico da polícia, escolho terminar esse texto relembrando algumas das vidas perdidas no Brasil:

Em memória de Ágatha Félix
Em memória de Kauê Ribeiro
Em memória de Kauã Rozário
Em memória de Kauan Peixoto
Em memória de Jenifer Silene
Em memória de Kethellen Umbelino
Em memória de Emily Victória
Em memória de Rebeca Beatriz
Em memória de Anna Carolina Neves
Em memória de João Vitor dos Santos
Em memória de Luiz Antônio da Silva
Em memória de Douglas Enzo Marinho
Em memória de João Pedro Matos Pinto
Em memória de Rayane Lopes
Em memória de Kathlen Romeu


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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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