Arte: Dora Lia |
Bruna Tamires, também conhecida como Malokêarô, é a idealizadora do Clube Negrita, um clube que incentiva a leitura de escritoras e escritores negros e o letramento através da leitura em coletivo, proporcionando a troca de ideias e a vivência conjunta em torno da literatura negra. Durante as sessões, cada participante lê um parágrafo do texto escolhido, praticando, assim, a fala, a escuta e os processos de compreensão coletiva da história contada.
Foto: Monomito Filmes |
Já fazia um tempo que eu acompanhava o Clube Negrita pelas redes e nutria o desejo de participar dos encontros. Pude concretizar esse desejo na edição número 12, que aconteceu em junho de 2019 e discutiu o livro Da Cabula, de Allan da Rosa, com presença do autor, que falou sobre a importância da leitura e da escrita para o processo de humanização das existências.
Estar presente em apenas uma das edições já foi o suficiente para me fazer sentir a certeza de que este é o clube de leitura que mais sinto que tem a ver comigo. Gostei do formato como o clube acontece, em que o público é convidado a ler trechos da obra e achei que a Bruna faz um belo trabalho de medição. Além disso, as leituras propostas são de obras que não são tão conhecidas do grande público, o que faz com que mais pessoas conheçam essas obras e saibam de sua existência.
Foto: Monomito Filmes |
Neste ano, desde maio, os encontros estão acontecendo na biblioteca do Sesc Avenida Paulista, sempre a partir das 16h. Na edição de maio foi discutido o livro Amada, de Toni Morrison e teve participação da Gabriela Moura, que é especialista em sociopsicologia e falou sobre a influência do racismo nas doenças psiquiátricas: como o racismo fortalece transtornos mentais e o que pode ser feito para evitar transtornos mentais derivados do racismo.
A edição que julho, que acontecerá no dia 06/07, discutirá o livro de contos Leite do Peito, de Geni Guimarães, com a presença de Suzane Jardim, que abordará os contextos de antes, os contextos sociais atuais e as possibilidades de mudança hoje.
Fonte: Facebook Malokêarô |
Em agosto (03/08) o livro da vez será Muito como um Rei, de Fábio Mandingo, com discussão conduzida pelo rapper Rincon Sapiência, falando sobre o que é ser homem negro Rei. Bará na Trilha do Vento, de Miriam Alves, será a leitura de setembro (07/09), com a presença da autora, discutindo sobre ancestralidade, mulher negra e transição da infância para vida adulta. Em outubro (05/10), o Clube será um pouco diferente porque quatro escritores de São Paulo, Bianca Chioma, Renato Kolla, Zainne Lima e Rafa Nunes, desafiarão os convidados do Clube a criarem e apresentarem micro-contos de terror. Novembro (02/11) terá a presença do escritor Cuti e seu livro Uma Farsa de Dois Gumes. O autor falará sobre a pergunta “e o futuro?”, dentro da farsa de dois gumes. Para terminar o ano, em dezembro (07/12) o livro discutido será Gramática da Ira, de Nelson Maca e discussão conduzida por James Lino, abordando a escrita como forma de expor o racismo.
Fonte: Facebook Malokêarô |
Sabendo das leituras que estão previstas para cada mês, fica mais fácil de organizar a vida para estarmos presentes no encontros.
Bruna Tamires muito gentilmente nos concedeu uma entrevista, falando sobre o Clube Negrita.
1) Vamos começar com uma apresentação. Quem é Bruna Tamires e como os livros e a Arte estão inseridos em sua vida?
Bruna Tamires… Eu acho que é uma estudante eterna e criadora para sempre. Lembro que fui bastante incentivada na infância (pelos mais velhos e pelas escolinhas que passei) à criação artística. Eu tenho uma tia que sempre me deu diários para escrever e vendo filmes eu passei a gostar dos livros também. Tive uma madrinha que me levava para vender bichinhos de biscuit na Liberdade. E meu pai sempre fez tudo cantando. Sinto que foi o acesso ao mais popular que me fez gostar do mais singular, como a literatura negra ou os quadrinhos. Filmes da Disney, desenhos da TV aberta (a TV Cultura com seus programas que ensinavam as crianças a criar), essas paradas que não deixam a criatividade da criança morrer. Mas, para além disso, foram mesmo as falas de incentivo dos adultos que me trouxe para perto da arte, toda as artes.
2) Como surgiu a ideia de criar o Clube Negrita?
Eu estava apaixonada por um homem e lia com ele sempre que nos encontrávamos. Ele também gosta de livros, então era uma química boa para cada um ler um parágrafo e trocar beijinhos… Eu me sentia muito bem fazendo isso com ele, mas só com ele não me bastou, rs. Eu me perguntei um dia “se é tão legal ficar lendo com ele e depois trocando várias ideias, como deve ser fazer isso com mais pessoas?”, e aí fiz o primeiro Clube Negrita em setembro de 2017. Lemos o conto Pai contra Mãe, do Machado de Assis, ele, meu primeiro parceiro de clube, estava lá, a casa, Aparelha Luzia, ficou cheia de gente interessada em ler e conversar. Foi um dia lindo que me impulsionou na certeza de que fazer um clube para falar de literatura negra era uma boa ideia.
3) O Clube Negrita já aconteceu em diversos espaços e agora está acontecendo na biblioteca do Sesc da Avenida Paulista. Você acha que o local em que o Clube acontece influencia no público que frequenta? Você tem planos de ter um local fixo para a realização dos encontros?
A primeira intenção do Clube Negrita era que ele fosse itinerante, pois a ideia de rodar a cidade (e ir além) me agradava (ainda agrada) mais do que ter um espaço fixo. Já houveram outras propostas de lugares fixos mas eu não senti que valiam um desafio como no Sesc Avenida Paulista. Digo isso porque é um lugar central numa cidade central; um espaço que promove arte e cultura num momento em que a promoção da arte e da cultura sofre uma grande metamorfose no país inteiro e vai mudando de atores políticos. Fazer um ciclo de clubes no Sesc é uma experiência onde o Clube é fixo mas o público é rotativo, isso é mais difícil do que ficar rodando com um público fixo, fica tudo aberto ao improviso de quem chega para compor a roda e ao meu, que estou ali mediando a leitura e a conversação.
Como eu disse, antes o público era mais fixo do que agora, também era mais negro e mais feminino. Alguns homens negros me disseram que por se chamar “Negrita” eles sentiam que não era para eles o clube, o semelhante aconteceu com pessoas brancas, que pensavam que por se tratar de literatura negra o clube não era para elas. Hoje o público é muito mais diverso do que antes, pois o Sesc é um espaço sem muitas marcações de gênero ou raça, e eu fico cada vez mais feliz por isso. Recentemente solicitaram uma intérprete de Libras, e esse é um dos novos desafios, fazer a literatura negra chegar para todas as pessoas, porque todas as pessoas precisam saber o que nós sabemos e assim transformar o que precisa ser transformado ou, pelo menos, não atrapalhar quem deseja viver de forma digna.
E sim, tenho planos para um lugar fixo, mas isso eu penso melhor depois que eu sentir que o Clube Negrita tem um público fixo, uma comunidade fixa, que topa ir em qualquer local para conhecer novos e antigos livros e autoras negras e negros.
4) Você acha que o Clube Negrita evoluiu desde a sua criação até os dias atuais? Como você percebe essa evolução?
Muito. Acredito que o clube evolua de acordo com as demandas de quem participa e de acordo com o meu tempo e dedicação organizando e pensando ele. No final do ano serão dois anos de Clube e 18 edições e eu já me sinto mais velha e segura de que se for para ser um Clube Negrita comigo e mais uma pessoa, ainda assim será um ótimo clube, por conta da qualidade da conversa e da abertura para trocar reflexões. Eu percebo a evolução pela forma material que ela adquire: agora imprimimos textos, sorteamos livros e prints, temos uma equipe de audiovisual, uma design de identidade visual.. São coisas que não acontecem de uma hora para outra (a não ser que a ideia inicial seja mais mercadológica do que ativista), então eu percebo a evolução assim, tendo cada vez mais condições de oferecer um Clube Negrita de qualidade na intenção, na apresentação e na difusão.
5) Você já foi questionada sobre a importância do Clube, no sentido de não verem razão para se fazer um recorte de raça nas leituras? Se não foi questionada nesse sentido, por que você acha que ter um clube de leitura como o Clube Negrita é importante para a divulgação de livros que não são reconhecidos como cânones?
Nunca fui questionada neste sentido. Ainda bem! Sabe, quando eu vendia zines pela cidade eu pude conversar com gente que odiava ler. Sei que existem pessoas que amam ler, pessoas que odeiam e um mar enorme de gente que não liga para ler. Eu penso o livro como um equipamento mágico que te ensina palavras, mostra sentimentos, conta histórias e te leva para os lugares mais absurdos (Kindred), surreais (Admirável Mundo Novo) ou comuns (O cortiço), e aqui eu falo de toda literatura, não só a negra. No nosso tempo a gente lê muito, mas 99% desse muito se resume em textos das redes sociais. Isso faz com que a reinvenção da roda seja cada vez mais frequente.
No caso da literatura negra, eu penso ela também como um remédio. Todo livro de literatura tem um pouco (ou muito) de quem o escreveu, conta a história sobre uma vida ou um tempo, e ao ler escritoras e escritores negros nós conseguimos entender a história que não se conta em livros de estudos acadêmicos, é uma história que só a literatura pode contar e que só comove com a literatura como ferramenta.
O Clube Negrita existe para as pessoas conhecerem autoras e autores negros de todo o planeta, conhecerem estas histórias, pensarem as semelhanças e diferenças da Conceição Evaristo com a Toni Morrison, por exemplo, saber o que estava acontecendo na Martinica 1800 e, a partir daí, pensar o Brasil nessa mesma época, por exemplo. Tudo pelos olhos e pela escrita de uma pessoa negra. E também, o Clube existe para ver a literatura negra e as outras literaturas e pensar quais são as semelhanças e diferenças, de jeito, de personagem, de bagagem cultural. E um livro “clássico” é bom sim, um cânone… Mas quem ou o que fez dele cânone? Qual foi a curva que não deixou Carolina Maria de Jesus ser cânone e qual foi a condição que tornou o Machado de Assis cânone? Então, acredito que temos que ler outras pessoas e fazê-las falarem por suas obras e assim nossa geração pode colocar todas elas nos lugares de prestígio e reconhecimento que elas merecem.
6) Para finalizar, quais são os parceiros que fazem com que o Clube Negrita caminhe em direção ao sucesso?
O coletivo Mulheres Negras Na Biblioteca, por meio da Carine e da Juliane, que estão comigo, me ajudam a crescer e acreditam em mim; a Dora Lia, que com a sua marca @dillasete faz a melhor identidade visual que o Clube Negrita poderia ter (ela reflete tudo o que eu penso do Clube); todas as pessoas que frequentam, apoiam e ajudam o clube e acreditam na maravilha da literatura negra, porque sem gente pra ler não existe clube de leitura; e a minha mãe, que acredita em mim.