Alerta de gatilho: estupro, mutilação genital e transfeminicídio.
Alerta de spoilers para os contos: “Amém”, “A voz da Consciência”, “Vendedora de Carne”, e “O Xis da Questão”.
Poderosa, alarmante e claramente destinada ao cistema, e não às pessoas trans, visto que estas já conhecem e se reconhecem inesgotavelmente em muitos dos contos, essa obra precisa urgentemente ser distribuída nas escolas. Atena constrói histórias que, através de uma influência filosófica de Judith Butler, Michel Foucault e Nietzsche, conseguem a proeza de serem, ainda que curtíssimas, extremamente tristes, trágicas e revoltantes em sua maioria, pois a autora não filtra o poder de suas palavras para que as histórias de abuso policial, violência doméstica, transmisoginia e estupro corretivo (dentro da própria família, inclusive) sejam mais palatáveis ao público cis, já que como sabemos, o Brasil é o país com mais casos de transfeminicídio, ao mesmo tempo em que é o país que mais consome pornografia trans.
Mulheres trans e travestis muitas vezes são forçadas a buscar o sustento nas ruas, nos becos escuros, em colchões sujos de sangue seco de motéis baratos, e isso se dá pela transfobia estrutural. Oportunidades que permanecem infinitamente em poder de homens cis, brancos e casados. Ou seja: os mesmos homens que as procuram na clandestinidade de uma rua afastada, ou de uma aba privada do navegador, são os mesmos que negam seus direitos de serem enxergadas no gerúndio. Não faria e não faz sentido diluir sua realidade para não chocar seu opressor com cenas de uma violência cometida por ele próprio.
Alguns destes Contos Transantropológicos possuem descrições gráficas de mutilação genital, estupro coletivo e assassinatos que acontecem num piscar de olhos, e isto é sintomático se pensarmos a rapidez com que vemos novas reportagens sobre mortes de mulheres trans e travestis em nossos aparelhos telefônicos dia após dia.
Em “Disforia”, Atena conta, de forma gráfica, a história trágica de uma menina que após deletar todas suas redes sociais e se livrar de todos seus espelhos, resolve fazer uma cirurgia de redesignação sexual em casa com produtos anestésicos comprados pela internet. A violência deixa de ser somente física, tornando-se uma intersecção de vários tipos de agressões e microagressões relacionadas não só ao gênero, mas como de classe, raça e afeto. Violências devastadoras e acumulativas de uma existência não só preterida, como também arrancada, jogada em covas rasas e enterrada com o nome morto.
Em “Eles Passarão, eu Passarinha” nos deparamos com um rapaz, que sem saber que namora uma mulher trans é confrontado por ela no fim de uma noite de bebedeira após ofender uma travesti que trabalhava em um estacionamento. Este conto é um exemplo primoroso de como homens transfóbicos são, em sua maioria, covardes e desprovidos de inteligência: ao saber que a namorada é uma mulher trans, ele reage primeiro sem nem mesmo entender o que a palavra significa, visto que só conhece a palavra travesti e obviamente usa o pronome masculino para ofendê-la. Logo, não entende o que a namorada está tentando explicar. Ao partir imediatamente para o clichê do homem heterossexual de masculinidade frágil “está tudo bem, só não conte pra ninguém porque eles não precisam saber que você já foi homem”, ele perde a namorada no decorrer daquela noite por culpa de sua própria imbecilidade.
A violência diária da falta de afeto, da falta de um abraço em público, ou de um almoço com a família do namorado se torna corriqueira. Esse tipo de violência silenciosa é propositalmente esquecida por jornais sensacionalistas porque tratar pessoas trans como sujeitos não gera cliques, assassinatos sim. De qualquer forma, o público saberia destes detalhes se consumisse arte feitas por pessoas trans, se não vivesse imerso em uma bolha cis, hétero e branca consumindo apenas remixes e reciclagens da mesma coisa eternamente, se pensasse fora do que é considerado natural. Mas o que é o natural, senão um conceito transmisoginístico criado pelo próprio cisheteropatriarcado para se manter no topo e expatriar o Outro à uma segunda categoria de existência, uma categoria em que pessoas precisam “buscar relações impossíveis somente para se sentirem úteis na solidão” (p. 28)?
Atena aborda a precariedade do sistema de saúde brasileiro e a falta de preparo de seus profissionais ao atender pessoas trans no conto “Mulheres e suas Próstatas”. Nesse conto a autora escreve sobre Estela e os minutos que precedem seu atendimento com um urologista. No salão de espera, Estela relembra os horrores sofridos em um internato durante sua infância e sua dificuldade enraizada em não relacionar o sangue dos estupros coletivos recorrentes do passado com a menstruação, pois, de acordo com sua mãe, assim sangraria como as mulheres, visto que “ser mulher era sentir dor com os rapazes para logo sangrar pela própria existência” (p. 41). Em “Quando Um Homem Aborta” a autora escancara a ignorância de duas anestesistas ao atender um rapaz trans. O tema também é central em “Transtopia”, conto em que uma funcionária de um hospital cospe seu fanatismo religioso que surge dissimulado como uma falta de educação ao atender uma travesti que esperava seu marido sair do trabalho de parto.
Em “O Xis da Questão”, um dos contos mais tristes que li nos últimos anos, Atena escreve sobre Lívia, uma profissional do sexo, que com apenas 17 anos viu-se obrigada a se prostituir no dia da morte da mãe, um ano antes. Nos minutos que antecedem um programa ela relembra seu passado desde a violência sofrida na escola, quando não podia usar o banheiro reservado a sua identidade de gênero, até o dia da morte de sua mãe, uma honesta dona de lanchonete. Esgotada e faminta após o programa daquela noite, Lívia sente saudades do lanche da mãe, resolve se alimentar em uma lanchonete, mas só come metade do lanche. Cansada, vai embora para sua casa. O final trágico de Lívia é atestado por todos os vizinhos quando, na manhã seguinte, seu corpo é encontrado esfaqueado em um beco, sem sinais de assalto ou roubo, no mesmo local onde sua mãe morrera um ano antes.
A autora usa seu talento com as palavras também ao elevar o termo “tragédia” ao seu sentido grego, clássico, nos remetendo à Zeus e Hera, ao escrever sobre a história de dois irmãos, Bibiana e Cicinho no conto “Vendedora de Carne”: ela, travesti, foge de casa por causa da transfobia do pai traficante. Anos mais tarde, sem saber, é visitada pelo irmão em um puteiro e ambos se amam loucamente por uma noite, até que a verdade é revelada pela cafetina do local, que para evitar problemas ainda maiores com o traficante, decide tomar medidas drásticas.
No conta “A voz da Consciência” acompanhamos uma travesti que após sofrer uma vida de perversidades se descobre em uma praça onde várias mulheres trans, travestis e gays estão reunidos. Não fica claro, mas ficamos com a impressão de que se trata de uma parada LGBTQIA+. A travesti passa a se sentir abraçada pela primeira vez na vida. Seu estranhamento aumenta quando começa a ouvir as pessoas ali presentes começarem a falar nomes de meninas vítimas de transfeminicídio, e, em coro, todos respondiam “presente” após cada nome. Com uma sensação ruim apossando-se de seu corpo, percebe-se invisível aos olhos alheios, tendo seu mundo despedaçado quando seu nome também é chamado.
Em “Amém”, um dos mais brutais e relevantes relatos da violência atual, uma conversa filosófica acontece entre uma travesti e o que parece ser uma divindade criadora das primeira e segunda humanidades. Talvez por perversidade, esta criadora permite a transfobia diária dos humanos. Todo o conto possui um tom de neblina, como se estivéssemos observando aquilo através de uma cortina hospitalar. Ficamos aflitos porque não sabemos para onde a autora está nos levando. Finalmente, após cair no sono, a protagonista se dá conta de que na verdade estava sobre efeito de anestésicos em uma cama de hospital se recuperando após ser espancada por 11 homens. Estava rodeada por suas amadas amigas.
Atena criou uma obra urgente e muito mais do que necessária. Obrigatória devido ao seu didatismo doloroso, através dela perceberemos como é importante a inclusão de profissionais da saúde trans, professoras trans, escritoras trans, psicologas trans, e principalmente, deixar que as histórias sejam contadas por quem tem propriedade, por quem realmente vive o que está se propondo a discutir, escrever, pintar, cantar, etc. Pessoas trans tem de ser livres para definir quem são e, no seu momento, quando são, para poder saber “se estão dentro do corpo ou se são o corpo” (p. 159), tudo isso sem precisar do atestado de aprovação de defensores de um binarismo arcaico e autômato.
Olhe agora em sua estante, na sua pilha de livros, no seu Kindle. Pondere. Quantos autores trans você leu? De acordo com um estudo feito por Amara Moira, apenas 50 livros de autores trans foram publicados no Brasil nos últimos 35 anos. Nós, os cis, não fazemos parte do problema, nós somos o problema. Compre, leia e consuma autores trans. Até que ponto você se sente confortável financiando a homogeneidade de uma arte feita única e exclusivamente por e direcionada à uma heterocisgeneridade branca e magra e que tem como único objetivo ignorar continuamente a voz das minorias?
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