Com prefácio de Terra Johari e tradução de Sandra Silva, Cultura fora da lei: representações de resistência é um livro escrito por bell hooks, publicado originalmente em 1994 e lançado no Brasil em 2023 pela Editora Elefante. A obra reúne diversos ensaios e algumas entrevistas que dialogam com a cultura pop dos Estados Unidos nas décadas de 1980 e 1990. Nela, a autora analisa escritoras feministas, filmes com temáticas negras e/ou feministas, diretores de cinema e rappers de sucesso que, embora considerados progressistas, quando observados com mais criticidade, revelam traços de machismo, homofobia e sexismo, além de expor o privilégio de classe de alguns deles.
Algumas das obras analisadas no livro são filmes de sucesso como “O Guarda-Costas”; “Malcolm X”; cantores como o rapper Ice Cube; Madonna; e pintores do calibre de Jean-Michel Basquiat; além do diretor Spike Lee.
Apesar de me aprofundar na entrevista com Ice Cube, em que hooks aborda a relação do rap norte-americano com a misoginia dos homens negros, é importante destacar como ela também direciona a atenção à escritoras que eram consideradas a voz do feminismo da época, apesar de serem apenas mulheres brancas privilegiadas que escreviam, claro, para outras mulheres brancas privilegiadas. Entre elas, Camille Paglia, cujo livro Personas sexuais, de 1990, chegou a ser criticado pelo tom homofóbico, egocêntrico e impreciso; Katie Roiphe, mais precisamente no livro The Morning After: Sex, Fear and Feminism on Campus — ainda sem tradução para o português; e finalmente, a escritora de direita Naomi Wolf, cujo livro mais famoso é O mito da beleza.

No ensaio intitulado “Cultura gangsta – sexismo e misoginia: quem levará a culpa?”, tem-se uma continuação de um tema corriqueiro na carreira de bell hooks: o mal causado nos jovens negros através das letras violentas, misóginas, e homofóbicas que são lugar-comum no rap norte-americano. Um ensaio que funciona quase como uma prévia da longa e interessantíssima entrevista intitulada “Cultura Ice Cube: uma paixão em comum por falar a verdade”, em que a autora, e Ice Cube — talvez o rapper norte-americano mais famoso da década de 90 por fazer parte do grupo de rap N.W.A., conhecido como o grupo de rap mais perigoso do mundo — dialogam, entre outras coisas, sobre o rap como arma política, amor próprio, violência policial, e claro, a misoginia do rap gangsta, usando Predator (1992), à época, o terceiro disco de estúdio do rapper, como ponto de partida.
“Só porque somos negros e escrevemos da maneira como escrevemos não significa que não queremos as melhores coisas na vida” – Ice Cube.
A entrevista em si já era esperada por vários fãs de ambos os lados: os fãs de rap estavam interessados em como Ice Cube se sairia ao ser bombardeado por uma pensadora negra e feminista. Já as feministas estavam curiosas para saber como bell hooks abordaria a questão da violência contra a mulher tão comum nas letras de rap. A entrevista foi uma quebra de expectativa que enriqueceu o debate: já cientes de que o público esperava algo bombástico, no estilo a negra feminista raivosa versus o negro violento, eles já começaram por tópicos muito mais pertinentes: o primeiro, como é imposto aos negros serem pobres para resto de suas vidas; o segundo, a culpa da mídia norte-americana em plantar o auto-ódio dentro dos homens negros, principalmente as crianças e os adolescentes.
Sempre que um artista negro faz sucesso, ascende social e monetariamente, seja se mudando para um bairro melhor, ou comprando um carro mais novo, ele será invariavelmente questionado e acusado de hipocrisia, de abandonar suas raízes. Algo no sentido: “como assim você fala sobre a pobreza no gueto, mas agora mora em uma mansão e dirige um carro blindado?”. Uma falácia que vemos até hoje, 3 décadas depois, inclusive aqui mesmo no Brasil. hooks, então, aproveitando o tema, dá sequência à conversa perguntando ao rapper o que ele está fazendo para que seu filho, O’Shea Jackson Jr., então com 3 anos de idade, não internalize o auto-ódio semeando pelos brancos.
Ice Cube inicia um longo comentário acerca do modo glorioso que os brancos são retratados historicamente, inclusive nas escolas. Essa idolatria branca, aliada às imagens negativas dos negros faz com que os mais jovens, tentem de toda forma se desvenciliar de suas características físicas. Em outras palavras, um novo tipo de ensino deveria ser implementado nas escolas, ou pelo menos nas conversas entre pais e filhos, para que os jovens pudessem crescer sabendo das atrocidades cometidas pelos brancos contra a população negra e indígena.
A entrevista, longe de ser apenas um embate entre perspectivas opostas, acaba se tornando um espaço de reflexão sobre identidade, pertencimento e resistência. Mais do que apenas apontar os problemas do rap gangsta ou da indústria cultural, bell hooks conduz a conversa para um debate maior: como os homens negros podem desafiar a narrativa branca que os define desde a infância. Fica evidente que tanto hooks quanto Ice Cube, cada um à sua maneira, estavam tentando responder a uma mesma pergunta: como sobreviver ao racismo estrutural sem abrir mão da própria humanidade?