Deixando a poesia entrar: “Algures”, de Carlos André

Hoje deixei a poesia entrar, mesmo que pela porta dos fundos, ainda que sem rumo, li Algures de Carlos André, publicado pela Editora Clóe em 2023. 

Os poemas da obra não trazem títulos, sendo possível que cada leitor formule os seus, a partir de suas próprias referências e leituras. Os poemas estão divididos em quatro partes: “nave”, “lábios”, “voltas” e “escrituras”. E se os livros são naves, Algures, já em suas primeiras páginas, nos convida para uma jornada em que deixaremos que a poesia entre, flutuante, e nos leve de um lugar a outro.

É um livro de poesia para ser lido em voz alta:

“tão pouco
quase oco
tão fundo
quase findo
tão
                                    longe
quase
encontro”

É possível sentir uma reação da forma ao conteúdo. São poemas curtos, com versos livres, nada além do que precisa ser dito, além da fulguração do agora. O jogo construído pelos versos de Algures, de Carlos André, refletem a própria natureza da poesia, além de trazer também a metalinguagem. Nesse sentido, em vários poemas da obra, surgem reflexões sobre a própria poesia e o fazer poético: “o poema me escreve /  estes poetas que somos”.

“Lábios”, segunda parte de Algures, é aberta com o verso “assim te habito”, nesse poema temos um encadeamento das palavras costuradas pelo advérbio “assim”. Essa construção se repete ao longo do poema, com outros verbos, “assim te colho”, “assim te escolho”, marcando a sonoridade do “s” e do “t”, terminando com “assim te adivinhe / artimanhe / teus pés”. Essa habilidade de Carlos André em fazer das palavras ritmo e melodia, ecoa em muitos cantos de Algures e contrapõe as limitações da poesia que abre “voltas”, segunda parte do livro. No segundo poema dessa parte, o jogo está na repetição do verso “a poesia não”, que sugere nas estrofes, uma lista de tudo que não podemos esperar da poesia. No entanto, apesar da versificação de tantas impossibilidades.

Algures nos mostra uma poesia que diz sim e está permeada por muitas possibilidades sonoras e imagéticas, porque a poesia é sim, algo que se move. Tanto que nessa mesma parte “voltas”, olhamos para “um menino e sua bola” e isso significa alguma coisa porque a poesia se permite ao delírio, ainda que nessa mesma parte também tenhamos os versos, “crianças / deliram a linguagem / mais adultas que os / adultos neste / exercício”.

Algures observa o exercício poético, criando poesia, porque toda a poesia não cabe no corpo e precisa ser expedida até algum lugar. Algures, pode ser um lugar assim. Mas também seria Algures, aquele momento de revelação em que percebemos, diante do nosso olhar sobre a vida, o quanto conseguimos ser poetas? “porque / penso / é que / invento / este / intento / de / tanto / pensar”. Em Algures, o pensamento poético.

Na quarta e última parte de Algures, temos “escrituras”, os poemas que respiram e esperam entre as plantas, serem alvejados, tornando-se mais curtos, como um gesto, como um haicai. E na última página, uma poesia-provocação em três versos “No fim / vira tudo / netflix”. Não me sinto pessimista diante desta afirmação, eu responderia ao poeta, com olho no olho e certo tom de desconfiança: “Você acha mesmo?”.

Vários versos de Algures mencionados aqui, foram produzidos fora da lógica linear e dialogam também com a forma da poesia visual e talvez essa seja uma forma que não coubesse nesse breve comentário sobre o livro. Existem partes de uma obra que um comentário não dá conta de dizer, é preciso conhecer a própria obra mesmo. 

O livro está disponível para vendas no @editora.cloe. A editora Clóe é uma casa editorial independente, focada na literatura contemporânea, apostando em novos talentos que carreguem originalidade e paixão pelos livros, além de promover cursos de formação literária  para diferentes públicos e formatos.

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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