Por muito tempo as mulheres não tiveram acesso à educação formal, o que faz com que a gente conheça muito mais filósofos homens do que mulheres, inclusive na Grécia Antiga, considerada o berço do pensamento ocidental, as mulheres não eram consideradas cidadãs, o que já marca a desigualdade de gêneros que permeia a filosofia séculos depois.
Dez mulheres filósofas e como suas ideias marcaram o mundo, de Armin Strohmeyer, publicado pela Editora Record, apresenta uma coleção de perfis de mulheres filósofas que de alguma forma demonstraram afinidade com a sabedoria e o pensamento sobre sobre a vida. Assim é compreendida a filosofia neste livro, uma vez que nem todas as mulheres apresentadas deixaram uma vasta obra filosófica, criaram um sistema ou fundaram uma escola. Desta maneira, as dez mulheres filósofas apresentadas, são assim consideradas a partir de suas ideias, que em suas épocas talvez não fossem consideradas filosofia mas que hoje, podemos entender como reflexões filosóficas.
É evidente que a filosofia também é uma produção de conhecimento que está atravessada pelos mecanismos de poder e dominada pela classe dominante: o homem branco e pelo pensamento ocidental europeu. Neste sentido, Dez mulheres filósofas e como suas ideias marcaram o mundo nos leva a pensar além dos cânones filosóficos que já conhecemos, trazendo as ideias de quem não costuma aparecer nos livros mais tradicionais de filosofia.
A obra apresenta dez filósofas de momentos históricos diferentes, a partir da criação da Escolástica. A apresentação delas é bastante narrativa, relacionando a contribuição filosófica que elas deixaram com a biografia delas. A primeira filósofa apresentada é Heloísa (c. 1099-1194), uma jovem que tinha um tio que adorava filosofia e contratou um filósofo, Abelardo, para ensinar filosofia a ela. Eles se apaixonam, ela engravida mas não quer casar. Conhecemos, então, trechos das cartas que eles trocavam. O tom do texto do livro que apresenta essa filósofa é divertido, e tem, inclusive, um tom de fofoca. A partir desta primeira filósofa apresentada, o livro instiga a curiosidade para conhecermos as outras nove filósofas que virão a seguir.
Ao conhecermos as histórias destas dez mulheres filósofas, indiretamente também conhecemos um tanto de sua relação que tiveram com filósofos homens, como Voltaire que no caso de Émilie du Châtelet (1706-1749) aparece como um parceiro intelectual. Me chama atenção que a vida pessoal e as relações que elas tiveram com esses homens pareçam ter tanta importância quanto as ideias de cada filósofa. Por um lado é interessante observar a trajetória pessoal de cada uma, entretanto, se pensarmos em como conhecemos os filósofos homens torna-se perceptível que há um desnivelamento porque pouco sabemos da vida pessoal dos filósofos. No entanto, a vida pessoal das filósofas apresentadas no livro parecem ser fundamentais, isto é, há uma escolha narrativa por parte do autor em comentar os casos que essas filósofas tiverem com os filósofos homens, por exemplo. A filosofia aparece como um gesto de amor e me pergunto se observar a história desta forma, não é voltar ao estereótipos de que as mulheres estão sempre muito emocionadas mesmo quando se dedicam ao pensamento racional.
Fora isso, Dez mulheres filósofas e como suas ideias marcaram o mundo é um livro muito interessante. A lista está organizada por períodos e faz uma assimilação com os movimentos intelectuais e culturais como o iluminismo e o romantismo. Isso nos ajuda a compreender o quão à frente essas mulheres estavam do seu tempo.
Existem algumas coincidências entre algumas filósofas do livro, como o fato de algumas terem sido freiras, como Hildegarda de Bingen (1098-1179) e Edith Stein (1891-1942). É interessante pensar como o conhecimento e a intelectualidade aconteceu dentro dos conventos. Uma vez eu escutei uma palestra da escritora Maria Valéria Rezende que foi freira, ela afirmou que quando terminou os estudos, não queria casar, por isso resolveu ser freira e não se arrepende porque a vida no convento foi o que permitiu que ela aprendesse muitas línguas, viajasse para muitos lugares e aprofundasse seus conhecimentos e habilidades literárias.
O livro chega a apresentar algumas filósofas mais recentes e conhecidas como por exemplo Simone Weil (1909-1943), Simone de Beauvoir (1908-1986), Hannah Arendt (1909-1975) e Jeanne Hersh (1910-2000). Além das filósofas citadas, Dez mulheres filósofas e como suas ideias marcaram o mundo apresenta também Cristina de Pisano (c. 1364-c. 1430) e Ricarda Huch (1864-1947).
Toda obra que se propõe a fazer uma listagem pode acabar sendo arbitrária e correr o risco de deixar vários nomes de fora, porque um processo de seleção inclui a subjetividade de quem seleciona. No final do livro tem um posfácio à edição brasileira que é bem interessante e tem outro tom. É escrito por Natasha Pugliesi, que é professora de filosofia na UFRJ. Ela apresenta algumas filósofas brasileiras considerando que é bastante injusto que o marco da fundação na filosofia do Brasil esteja ligada à produção que ocorria nas universidades europeias ao longo do século XVI. Com um tom mais crítico, ela afirma que dizer que mulheres fazem filosofia, se entendermos que filosofia é o exercício racional voltado às questões ligadas aos fundamentos das coisas, é uma obviedade, é claro que as mulheres fazem filosofia bem como outros grupos excluídos socialmente, como os negros, os indígenas, os imigrantes etc. Neste posfácio ela nos apresenta: Teresa Margarida Silva e Orta (c. 1711 – 1793), Ana Eurídice Eufrosina de Varandas (1806-1863), Nise da Silveira (1810-1885), Maria Firmina dos Reis (1822-1917), Josefina Álvares de Azevedo (1851-1913), Emília Freitas (1855-1908).
A escolha destes nomes considera as contribuições filosóficas que tivemos até o século XIX. O feminismo negro, por exemplo, fica de fora dessa breve narrativa pois seria necessário considerar o seu contexto histórico, não podendo ser associado ao iluminismo ou aos movimentos que tivemos até o fim do período imperial. De qualquer forma, bem como a lista organizada por Armin Strohmeyer, o posfácio traz uma grande contribuição para pensarmos quem são esses nomes femininos da filosofia e também suscitar novas pesquisas. No final do livro também temos uma bibliografia detalhada das referências de onde foram tiradas cada narrativa sobre as filósofas.
Embora eu tenha críticas ao tom narrativo do livro, não deixa de ser uma publicação interessante para conhecer filósofas mulheres e com uma linguagem acessível, muito interessante para quem está começando a pensar em filosofia e quer conhecer alguns nomes que não sejam masculinos.