Diário de leitura Um Defeito de Cor (Capítulo 2)


Texto de C. Coelho.
O post de hoje é continuidade da Leitura conjunta de “Um defeito de cor”, da Ana Maria Gonçalves, e contém spoilers. Caso queira participar, clique aqui para saber mais e acompanhar com a gente. A tentativa aqui é, além de contar os ocorridos do capítulo, também trazer algumas temáticas envolvidas durante a narrativa e um pouco da minha experiência e opiniões sobre a leitura. Espero que gostem.
O projeto foi idealizado pela Alê, no instagram, e terá os diários de leitura escritos aqui e no blog da Maria. Caso não tenha visto o post acerca do capítulo 1, deixo aqui o link para que possa ler antes de darmos continuidade.

E chegamos ao final da terceira semana de leitura. Concluímos o segundo capítulo deste enorme livro. E no final do capítulo 1, Kehinde, nossa protagonista, saiu da Ilha dos Frades, local em que ela havia ficado alguns dias para que se recuperasse da viagem de África até o Brasil, e foi levada com os outros negros para a ilha de Itaparica.
Segundo o relato de Kehinde, a chegada à ilha foi maravilhosa para ela. Era muito bonita. E rapidamente ela é comprada por um senhor, José Carlos de Almeida Carvalho Gama, com o intuito de que a menina fique com sua filha, Maria Clara, e seja escrava dela.
O segundo capítulo começa com a chegada de Kehinde a Itaparica e nessa casa em especial e como sua vida começa a se estabilizar de alguma maneira, até a ida de Maria Clara para um convento estudar. Nesse meio tempo, muita coisa acontece, desde a amizade entre Esméria e Kehinde, até aquela cena horrível e que me deu calafrios, da esposa de José Carlos, a Ana Felipa, arrancando os olhos de Verenciana com uma faca.
Diante de todos esses acontecimentos, há alguns pontos principais que eu gostaria de tratar. E o primeiro deles é o uso dos sapatos.
No século XIX, era sinal de grande poder aquisitivo quem usasse sapatos, portanto, escravos usando sapatos, mesmo que “da casa”, ou seja, que estavam ao lado dos seus senhores, nos serviços de dentro da casa-grande e até com algumas regalias, não era comum, pois não era digno da posição que ocupavam, o que explica muito bem o espanto de Kehinde ao vê-los calçados:
“Quando o jantar ficou pronto, um preto bem-vestido apareceu para pegar as travessas, muitas, onde a Esméria ia ajeitando a comida de várias qualidades, cada uma disposta em sua própria vasilha. Fiquei tentando imaginar, pela quantidade e variedade, quantas pessoas moravam naquela casa. O preto se chamava Sebastião e era quase branco no seu jeito de andar e de falar, tendo até os pés calçados, como também era o caso da Antônia, que apareceu para ajudá-lo, vestida com roupas diferentes das que a Esméria e a Firmina usavam.” p. 75
Acho interessante mostrar a vocês algumas pinturas do século XIX que mostravam escravos da casa, que serviam diretamente aos senhores, mas que mesmo assim não usavam calçados, afinal, eram escravos. Trouxe duas imagens apenas, só para exemplificar, e as duas são do pintor Jean-Baptiste Debret.
DEBRET, Jean Baptiste. Cena de Rua (patrão e escravo). Aquarela, 12,8 x 10,4 cm; 1817-1829; Coleção Geneviève e Jean Boghici, Rio de Janeiro (hoje perdida).
DEBRET, Jean Baptiste. Um funcionário do público: sai de sua casa com sua família. A mulher brasileira em seu interior: Viagem pitoresca e histórai ao Brasil, vol. 2, 1835, prancha 5.
Como podemos observar nas duas imagens, os escravos estão bem vestidos. Na primeira, como diz o título da pintura, o escravo é, de alguma maneira, família também, mas o distanciamento sempre está presente no fato desses escravos não usarem sapatos. Diversas outras questões poderiam ser analisadas nessa imagem, mas acabaria fugindo ao livro, portanto não cabe aqui escrever sobre.
Outro tema importante nesse capítulo em especial é a apresentação que se faz das crenças de África no Brasil. Não é permitido o culto de deuses e santos que não sejam da religião católica – e a repulsa é muito maior em se tratando de religiões de matriz africana -, o que faz com que os negros criem maneiras de continuar cultuando seus deuses. A maneira que eles encontram é esconder as imagens que cultuam nas paredes da senzala e também cultuar seus deuses nos orixás e nos próprios santos católicos. No capítulo, a personagem nos conta a respeito disso:
“No Brasil, o culto aos orixás era forte demais até para o grande poder que os voduns possuíam. Ela também disse que eu poderia me valer dos orixás para cultuar alguns voduns, porque, na Bahia, Mawu, Khebiosô, Legba, Any-ewo, Loko, Hoho, Saponan e Wu eram cultuados como Olorum, Xangô, Elegbá, Oxum, Iroco, Ibêjis, Xaponã e Olokum. Na Bahia, os orixás já tinham tomado conta das cabeças dos pretos e o culto deles vinha de muito tempo, praticado por quase todos os africanos que, por muitos e muitos anos, iam parar naquelas terras. Nossos voduns nunca teriam força para ganhar um pouco de espaço ou atenção, e para eles estava destinado um lugar não muito longe dali, do qual, por enquanto, ela nada podia falar.” pp. 83-84
E quem explica tudo isso a Kehinde, é Nega Florinda, uma negra alforriada e conhecida por ser uma feiticeira. Nega Florinda é uma personagem muito importante na narrativa, pois é ela quem vai ajudar Kehinde a resgatar esses voduns da cultura dela e também a preservar a alma de sua irmã, Taiwo, junto com ela, ao lhe dar um pingente (costume comum quando um irmão gêmeo morre, para que a alma não fique dividida). Nega Florinda, nesse momento, simboliza toda a proteção que Kehinde ainda terá durante toda sua vida, é quem garante que a África continuará na mente e no coração de Kehinde.
Também é muito bonito todo o ritual que é feito para ajudar Verenciana quando ela perde os olhos. A questão da coletividade resumida nas diferentes maneiras e ritos para que se consiga salvar a negra é incrível. Escolher essa maneira para apresentar a força dessas religiões, foi bem interessante, até para nos explicar que uma intolerância religiosa não existia dentro daquela população, de maneira que o importante era todos se juntarem para ajudar aquela que também passava os mesmos percalços que eles e que necessitava de tudo que fosse possível.
Uma personagem que eu gostei muito nesse capítulo foi a Esméria. Esméria é aquela que vai ajudar Kehinde, ser uma espécie de segunda mãe para a menina, garantindo sua proteção dentro da casa-grande e do Brasil mesmo, como um todo. É muito bonito como ela protege e ajuda Kehinde durante todo o capítulo, e a confiança que Kehinde tem para com ela também.
E por último, mas não menos importante, eu gostaria de falar sobre o choro de Kehinde. Desde o início do livro, eu estava gostando bastante da história, mas me incomodava um pouco essa espécie de “apatia” por parte da Kehinde em relação à morte de toda a sua família, ao fato de estar sozinha. E no momento em que a protagonista chora pela perda eu consigo começar a ter uma sensibilidade maior e me sentir mais próxima da personagem. Coloco aqui, na íntegra, o trecho narrado sobre o choro, porque realmente achei muito emocionante e delicado, de sua maneira.
“Olhando o cortejo, eu me benzi e dei um beijo no meu pingente de ibêji, sentindo grande tristeza ao me lembrar de tanta gente que já tinha visto morrer em tão pouco tempo. Primeiro o Kokumo, depois a minha mãe, a Taiwo e a minha avó, fora todos os outros que não eram da família, todos os que tinham sido atirados ao mar para virar comida de peixe. Fiquei com o estômago embrulhado e vomitei; o Tico disse que eu era fraca, que já estava até vomitando de medo de ir com eles para o mato caçar assombração. Eu nem respondi, havia um silêncio muito grande dentro de mim e ao meu redor, onde nem os passarinhos cantavam, nem o vento piava, nem as ondas batiam. Nada, nada, nada. O pequeno cortejo pegou a praia, na direção da igreja e do povoado, e sumiu por trás dos coqueiros. Eu fiquei olhando o nada, com vontade de também fazer nada, mas me levantei e saí caminhando em direção à água, o que ninguém percebeu. Sentada na areia, fiquei olhando o mar e chorando todas aquelas mortes que pareciam estar dentro de mim, ocupando tanto espaço que não me deixavam sentir mais nada. Os olhos ardiam com as lágrimas salgadas, como se fossem mar também, e senti uma solidão do tamanho dele, do tamanho da viagem da África até o Brasil, do tamanho do sorriso da minha mãe quando estava dançando, do tamanho da força com que a Taiwo segurava a minha mão enquanto observávamos o riozinho de sangue do Kokumo.” p. 101
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Espero que tenham gostado desse diário de leitura. Se está acompanhando a leitura com a gente, comenta aí embaixo o que tá achando e suas considerações sobre o capítulo. Para ficar por dentro de todos os diários que sairão por aqui, segue o blog aqui do lado.
O próximo diário de leitura sairá no dia 26/08 no blog da Maria, então marquem a data.
Um abraço, e até logo!

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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