“Drive my Car”: um filme contemplativo sobre o luto

Drive My Car. Ano: 2021.
Direção: Ryusuke Hamaguchi. Roteiro: Ryûsuke Hamaguchi e Takamasa Oe. Elenco: Hidetoshi Nishijima. Reika Kirishima, Tōko Miura e Masaki Okada.
Nota: ★★★★★

Sucesso imediato de público e crítica, e baseado no conto homônimo de Haruki Murakami — presente no livro Homens sem Mulheres —, Drive my Car é um épico dramático japonês dirigido por Ryusuke Hamaguchi onde um ator e diretor de teatro (Yūsuke Kafuku, interpretado magistralmente por Hidetoshi Nishijima), precisa lidar com os problemas culturais e pessoais envolvendo o elenco multilíngue de sua nova peça de teatro baseada em Tio Vânia, clássica peça do dramaturgo russo Anton Chekhov.

Se o ato de dirigir uma peça de teatro por si só já é um trabalho estressante, imagine cuidar de uma produção tão emblemática enquanto o luto te corrói por dentro. Pois é isto que acontece com Kafuku: processando a morte da filha de 4 anos ocorrida há mais de uma década, o sujeito ainda precisa lidar com o luto causado pela morte repentina de sua esposa (Oto Kafuku, interpretada de modo tragicamente sensual por Reika Kirishima), vítima de uma hemorragia cerebral no mesmo dia em que Kafuku chega mais cedo em casa e a flagra em uma traição.

Como se a vida de Kafuku já não estivesse complicada o suficiente, dois anos após a morte da esposa, em Hiroshima, ele descobre estar com glaucoma, e por isso, a companhia de teatro onde ele atualmente trabalha designa Misaki Watari (interpretada de forma silenciosa e enigmática por Tōko Miura), uma jovem motorista para locomovê-lo diariamente. Reticente a princípio, Kafuku acaba, através de coincidências traumáticas em comum, criando uma relação amigável com a motorista, que tem a idade que a sua filha teria se estivesse viva.

Hamaguchi abre a narrativa de forma poética, em um plano médio em que Kafuku e sua mulher — que aparece apenas em silhueta — estão à meia-luz conversando após uma transa, onde, curiosamente, ela costuma narrar seus roteiros ao marido antes de dormir. Ele, por sua vez, nas manhãs seguintes descreve todo o roteiro para a mulher, que o transcreve no computador, para em seguida, transformar em programas de TV. Oto, então, lê e grava as falas da peça para o marido ouvir, estudar e decorar nas suas viagens de carro. E o fato de que Kafuku, 2 anos depois da morte da esposa, ainda escute sua voz funciona ao mesmo tempo como uma lembrança da esposa, mas também como se o fato de a ouvir constantemente após a sua morte dificultasse o processo de lidar com o luto.

Com 3 horas de duração, e curiosamente, nos mostrando os créditos iniciais somente aos 40 minutos, Drive my Car é um filme contemplativo sobre o luto, a culpa, o amor e a relação entre a vida e a arte. Hamaguchi trabalha sem pressa e cria cenas longas e memoráveis que dão a oportunidade ao telespectador de absorver não apenas a composição da cena em si, como também o diálogo, a expressão facial dos atores na cena e a fotografia, como por exemplo aos 27 minutos, quando em uma cena absurdamente sensual, Oto começa a descrever um de seus roteiros enquanto faz sexo com o marido, ou, ainda, já no meio da narrativa, quando Kafuku e Watari começam a perceber que os seus traumas pessoais serão importantes nos seus encontros diários, ou, na cena mais memorável, quando Kõshi Takatsuki, um jovem ator de temperamento forte (interpretado ao mesmo tempo com ternura e violência por Masaki Okadaum) — em um carro em movimento — assume para Kafuku que também amava Oto.

Existe uma constante tensão relacionada ao jovem ator, que reage de forma violenta sempre que um fã tenta tirar alguma foto sua em público, e, simbolicamente, o sujeito, entre os personagens principais (tanto do filme, como da peça de teatro dentro do filme) é um dos que mais transmite emoção e ternura quando fala de seus sentimentos. Claro, tudo se encaixa mais para frente, quando entendemos o motivo da sua violência diante das tentativas de fotos de seus fãs.

Finalmente, é impossível escrever sobre Drive my Car sem citar a beleza do Saab 900 Turbo de Kafuku. O carro, pintado em um vermelho imponente, se pensarmos com atenção, é o protagonista do filme, pois é praticamente nele que as cenas chaves acontecem. É nele que presenciamos a desconstrução gradual do protagonista em sua tentativa de lidar com a morte da mulher e o vemos criar uma conexão real com outro ser humano. No caso, Watari.

Drive my Car é um filme sublime que nos leva — literalmente — em uma viagem por sentimentos profundos e pertinentes para que possamos ao menos tentar entender as relações humanas, sejam elas sociais, profissionais ou conjugais. Drive My Car fez história ao ser o primeiro filme Japonês indicado ao Prêmio de Melhor Filme em 94 anos de premiação, ao ser indicado aos Prêmios de Melhor Filme Estrangeiro, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Diretor e Melhor Filme, e inexplicavelmente, Ryusuke Hamaguchi é apenas o terceiro diretor japonês a ser indicado ao Oscar de Melhor Diretor.


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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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