Duologia Brasil 2408: (In)Verdades e (R)evolução- Lu Ain-Zaila

   
           (In)Verdades e (R)evolução são os títulos que compõem a duologia Brasil 2408, livros da autora carioca, Lu Ain-Zaila. Ambos publicados de forma independente em 2017, têm como personagem principal a jovem Ena Dias da Silva.
            A história se passa na República Distrital do Brasil, que é dividido em três partes: Região Centro Noroeste, Nordeste e Sudeste, no século 25, ano de 240, numa realidade na qual o país como conhecemos atualmente está totalmente mudado. Como o prólogo mostra através de uma série de notícias, ao longo dos séculos, do 22 ao 25, a situação climática do país foi ficando cada vez pior, resultando em um grande colapso, de modo que praias, árvores e outros elementos da natureza são artefatos de museus. Com isso, o governo teve que se organizar de modo a garantir uma forma de sobrevivência em que não fosse preciso recursos naturais para tal.
            Desse modo, o governo controla integralmente a sociedade. Todos os civis possuem um Aparelho de Comunicação Integrada (ACI), um dispositivo que reúne em um só lugar todas informações do cidadão, a quantidade de alimentos por família é racionada por um órgão responsável por esse controle, o Centro de Controle Distribuição Pública (CCDP). Obviamente não é uma sociedade perfeita e há pessoas, chamadas de fan.bers., sigla de fantasmas cibernéticos, que tentam burlar o sistema para conseguir ter mais que as outras.
            O pai de Ena, Amir Dias, era um Alto Oficial e trabalhava para o governo como resgatante. Quando Ena era criança, o pai sofreu um ataque em seu trabalho num dia de visita da filha e este episódio, além de ter sido muito traumatizante, fez com que Ena desejasse seguir os mesmos passos do pai e se tornasse uma oficial para proteger o país. Naira Dias, a mãe de Ena, é chefe do CCDP e dado os riscos existentes na profissão que a filha almeja, não gostaria que ela seguisse por esse caminho, mas apesar de não concordar muito, respeita a escolha da filha e ambas têm uma boa relação.
            O primeiro livro tem início com Ena e seus amigos finalizando um ciclo de suas vidas que é o fim de seu treinamento para tornarem-se oficiais distritais. Passam alguns dias na expectativa de uma resposta afirmativa ou negativa e quando finalmente a resposta afirmativa chega, vão treinar para assumirem o cargo que almejam. Nessa nova fase, cada recruta é dividido em grupos e Ena é separada de seu grupo de amigos original, de modo que seu novo grupo é composto de forma diversificada por Naná, uma indígena e Wadei, um rapaz com próteses nas pernas. O treinamento é de caráter eliminatório e ao longo dos dias as equipes que não vão bem nas provas práticas são desligadas do treinamento e enviadas de volta para suas casas. Ou seja, é preciso ter psicológico para passar por isso, saber trabalhar em equipe e nunca deixar de ter em mente o objetivo final, que é um cargo como oficial.
            Em um dos treinamentos, Ena tem contato com uma manifestação pacífica de pessoas que resistem ao sistema identificação e controle de cada civil e não possuem ACI, vivem às margens do sistema e lutam pelo direito de não terem suas vidas constantemente monitoradas.
            No segundo livro, Ena terá muito mais contato com os não-identificados, como são chamadas essas pessoas. Desde o final de (In)verdades, tudo que ela entendia como verdades absolutas passa por uma mudança e (Re)voluçãoadentra de modo mais aprofundado nessa nova realidade, na qual um símbolo sankofa pode ter um papel importante.
            A narrativa alterna de acordo com os capítulos, alguns são em terceira pessoa enquanto outros são em primeira, narrados do ponto de vista dos personagens. A construção se dá, então, por meio de narração e de muitos diálogos.
            Pensando na duologia como um todo, o universo próprio e inovador que a autora constrói, com seus aspectos ambientais e sociais, é muito impressionante, ainda mais por ter como cenário um Brasil dentro de uma realidade distópica, num futuro distante em termos de data, mas muito próximo se formos comparar com a atual realidade brasileira. As tramas políticas tornam a narrativa envolvente e os personagens são dotados de complexidade psicológica. É possível perceber que Ena, como protagonista, amadurece muito ao longo dos livros e que os demais personagens têm função na trama.
            Mas há pontos que me incomodaram ao longo da leitura. Um deles é que há muitas siglas e num primeiro momento é preciso fazer uma lista do significado de cada uma delas, o primeiro livro poderia ter trazido isso, já que é o primeiro contato do leitor com este universo, coisa que o segundo livro acerta em fazer. Tenho plena consciência de que em uma publicação independente o orçamento é reduzido para investir em serviços básicos, no entanto, revisão é fundamental para proporcionar ao leitor um livro em que seja possível ter uma experiência de leitura satisfatória, nesse sentido, me incomodou muito a falta de revisão. Por outro lado, também tendo em mente o caráter independente da publicação, merece elogios a diagramação e as capas que trazem estampadas a imagem da protagonista, negra e com seu cabelo black orgulhosamente à mostra.
           
            Por fim, acho que é possível estabelecer aproximações com o livro A Parábolado Semeador, de Octavia E. Butler, que também é protagonizado por uma jovem negra, se passa em um cenário futurístico e apesar de retratar uma realidade californiana, os estragos provocados pelas forças ambientais também trazem uma perspectiva de futuro não muito animadora.
Os livros podem ser adquiridos no site da autora. Lá também é possível ler os 10 primeiros capítulos do livro 1.

3 respostas

  1. Ótima resenha, Maria! Parabéns!! ��
    Quando leio sobre livros assim, me lembro logo se "Jogos Vorazes" e "O doador de memórias". Deve ser massa ler um livro distópico com personagens negros e com costumes e realidades próximas às nossas, mesmo sendo uma fantasia.
    Quero demais ler a Lu!!!

  2. Oi Maria, tudo bem? acabei de conhecer o seu blog (pela resenha de "a mecânica do coração"), essa sua resenha, em especial, me deixou com muita vontade de ler esse livro (só me fez aumentar a lista haha).
    Obrigada pela dica

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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