A Editora Civilização Brasileira está relançando as peças de teatro publicadas anteriormente e dentre elas está Eles não usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri, relançado em 2021.
A galera que cresceu na década de 90 provavelmente tenha alguma lembrança desse autor, ele fazia o avô do Lucas Silva e Silva na série “Mundo da Lua” da TV Cultura (aliás, que saudade dessa série!). O Guarnieri é um dos autores mais importantes do teatro brasileiro, ele era envolvido com as questões políticas e sociais do país e foi um dos responsáveis pelo Teatro de Arena. A Editora Civilização Brasileira publica Eles não usam black-tie desde sua primeira edição que foi lançada em 1958, que teve sua estreia neste mesmo ano.
Além de ser uma das peças mais conhecidas da dramaturgia brasileira, o tema dela despertou a minha curiosidade porque ao longo da minha formação no curso de Letras acompanhei de perto algumas greves de trabalhadores e também do movimento estudantil. O que vemos nesse texto são as diferentes perspectivas sobre a greve proletária e o movimento dos trabalhadores. A edição vem acompanhada de textos críticos sobre a peça, comentando as encenações e um texto do próprio Guarnieri comentando a peça. Para quem trabalha com a escrita, o comentário dele é muito interessante porque expressa o processo criativo ao falar da espontaneidade da escrita e da autocrítica.
Embora não seja tão comum a leitura de textos teatrais por quem não é da área, como já mencionei aqui no blog outras vezes, eles trazem um desenvolvimento das ações naquela ideia de começo, meio e fim que serve a qualquer história, de uma forma muito nítida principalmente quando a peça está dividida em três atos.
Nessa peça de três atos temos Tião, um operário, morador do morro, que está prestes a se casar e ter um filho. No entanto, na época da festa de noivado estoura uma greve de trabalhadores na fábrica em que trabalha. Ele, com receio de perder dinheiro e não conseguir garantir o sustento da noiva e do filho que vai nascer, não adere à greve. Mas o pai dele, Otávio, trabalha na mesma fábrica e é um dos líderes do movimento grevista. O conflito da peça está nas questões éticas entre participar ou não da greve.
No primeiro ato temos a apresentação dos personagens, do espaço e os primeiros indícios dos conflitos da peça. A família de Tião mora em um barraco. Ele fica noivo de Maria e trabalha na mesma fábrica que o pai, onde os operários estão organizando uma greve por melhorias salariais. Neste ato já vemos que pai e filho não têm o mesmo posicionamento político: Tião parece indeciso em relação à greve enquanto o pai é assertivo e defende o movimento grevista. Já no segundo ato conhecemos um pouco mais sobre o contexto social da peça, o tratamento que o patrão dá aos trabalhadores e as perspectivas de Tião em relação ao casamento; a cena da festa de noivado, momento em que Maria já está grávida e Tião decide furar a greve. Já no terceiro ato temos o desenvolvimento da greve da fábrica e Otávio é preso e depois liberado. A personagem Maria também discorda da postura de Tião e ele vai embora de casa porque passa a ser rejeitado na comunidade por ter furado a greve.
O teatro, bem como as artes, não está isolado da sociedade. Em Eles não usam black-tie tem-se expressa a realidade do fim da década de 50. Ainda que o foco da peça seja a relação entre pai e filho e a divergência de opinião a respeito da greve, quando observamos o tratamento que eles oferecem tanto à Romana (companheira de Otávio e de Tião) e à Maria (noiva de Tião) é possível perceber que eles são um tanto parecidos na forma de se relacionar com as mulheres e entenderem seus papéis sociais. Apesar de ter uma postura marcadamente de esquerda, Otávio não colabora muito nas tarefas domésticas, Romana parece um tanto sobrecarregada cuidando de tudo em casa, e em muitos momentos Otávio manda que ela faça as coisas. Na década de 50 a gente achava isso normal, que bom que o Brasil avançou um pouco e hoje podemos reconhecer a estranheza que uma cena como essa nos causa em 2021. Poderíamos chamar esse personagem também de “esquerdomacho”. Eles não usam black-tie é uma peça que possibilita vários debates, inclusive esse, sobre as formas de opressão existentes em nossa sociedade.
No segundo ato temos uma cena bem interessante: Uma discussão entre Tião e Maria em que ele enfatiza que não quer que ela trabalhe depois de casar, e aí o irmão dele, Chiquinho, responde que é um “pensamento burguês”. Mas então, a família de Tião com o pai politizado e a mãe que está em casa tentando dar conta de todas as tarefas domésticas também não estão vivendo sob um modo burguês? O segundo ato termina com essa cena em que Tião diz à Maria “Fica quietinha sem pensar”.
Para além de ser um clássico da dramaturgia brasileira, gostei de ler Eles não usam black-tie porque mostra as contradições e as questões sociais que continuam presentes em nossa época, sobretudo porque o nosso país parece retroceder mais a cada dia. Se você nunca leu uma peça de teatro, Eles não usam black-tie é ótima para começar e se você já tem o hábito de ler peças de teatro essa vai te fazer lembrar como esse tipo de leitura pode ser prazeroso!
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