Emoção e alegria na medida certa em “No ritmo do coração”

Título original: CODA. Ano: 2021.
Direção e roteiro: Sian Heder. Elenco: Emilia Jones, Marlee Matlin, Troy Kotsur, Ferdia Walsh-Peelo, Daniel Durant e Eugenio Derbez.
Nota: ★★★★★

No Ritmo do Coração é um filme lançado em 2021 que conta a história de Ruby Rossi (Emilia Jones), a única pessoa ouvinte em uma família de surdos que sobrevive da pesca em Gloucester, nos Estados Unidos. A jovem é indispensável como intérprete na vida dos pais Frank Rossi e Jackie Rossi (interpretados de forma tocante e bem-humorada por Troy Kotsur e Marlee Matlin, respectivamente, e do irmão mais velho Leo Rossi, interpretado por Daniel Durant).

Após ver Miles (um garoto que ela gosta, interpretado por Ferdia Walsh-Peelo) se inscrever no coral da escola, ela decide, de forma impulsiva, fazer o mesmo. E para surpresa de Bernardo “Mr. V.” Villalobos, seu professor de música (interpretado de forma hilária por Eugenio Derbez), e de outros membros do coral, ela tem a melhor voz de todos, e por isso, Mr. V. a escolhe para fazer parte de um dueto — para surpresa de absolutamente ninguém — com Miles no recital da escola.

A partir dos ensaios, Ruby é incentivada por Mr. V. a tentar uma vaga na prestigiada Berklee College of Music, que fica em Boston. O principal problema é que o negócio de sua família está prestes a falir, e sua presença como intérprete é mais necessária do que nunca (grande parte do filme possui diálogos em ASL, língua norte-americana de sinais). Por isso, ela precisa decidir quais são as prioridades de sua vida: ficar presa na pequena cidade trabalhando com a família (decisão que é simbolizada por um breve close-up no início do filme, quando vemos a própria Ruby colocar alguns peixes em uma caixa e enterrá-los com gelo), ou seguir seu sonho de se tornar uma cantora em uma cidade maior.

Depois de estabelecer algumas dinâmicas — entre Ruby e Miles; entre Ruby e sua família; e entre a família de Ruby e os trabalhadores locais —, a diretora usa cada minuto do filme em cenas que servem para avançar a narrativa, não desperdiçando o tempo do espectador com cenas desnecessárias. Em determinado momento, por exemplo, vemos a protagonista acionar o alarme de seu relógio para as 3 horas da manhã (ela trabalha com a família no barco todos os dias antes de ir à escola pela manhã), adiante somos levados à sala de aula onde a jovem dorme durante uma importante explicação de sua professora. Essas cenas servem de termômetro para que fiquemos do seu lado, torcendo para que ela seja aceita em Berklee. Mas, antes, a garota precisa ser aceita por Mr. V., uma vez que devido à sua carga horária como ajudante de sua família, ela simplesmente não consegue organizar seus horários para os ensaios particulares com ele, e, por conseguinte, com Miles, em sua casa — onde acontecem as cenas mais engraçadas do longa, como aquela envolvendo a deficiência auditiva e o apetite sexual de seus pais.

Atuações
A grande força da produção está na atuação e interação entre os personagens. Sejam nos momentos de atritos familiares, que podem ser pesados e dolorosos em alguns momentos, engraçados e divertidos em outros; mas que irremediavelmente nos mostram que estes comentários — que na superfície parecem ser apenas brincadeira — carregam um peso de décadas de ressentimento. Como por exemplo, as frequentes trocas de farpas entre Ruby e seu irmão Leo, que graças à atuação de Daniel Durant, não se transforma na caricatura do irmão mais velho ciumento. Vemos que o rapaz carrega seus traumas e suas tristezas por se sentir preterido pelos pais quando a configuração da família de surdos perfeita se altera graças ao nascimento da irmã ouvinte.

Já Marlee Matlin, que venceu o Oscar de Melhor Atriz — em sua estreia como atriz — em 1987 pelo filme Filhos do Silêncio, interpreta Jackie Rossi de modo comedido, como uma mulher com medo de criar laços humanos no mundo exterior. Conseguimos perceber e sentir sua dor apenas pela sua linguagem corporal que se altera de acordo com as situações diárias, ficando introspectiva nas cenas com os filhos, principalmente na cena em que ela abre seu coração para a filha; mudando completamente para uma mulher feliz e cheia de vitalidade quando está na cama com o marido.

Chegamos a Troy Kotsur, que brilha como um pai amoroso, divertido, um sujeito que não pensa duas vezes antes de fazer comentários maliciosos e divertidos, mas que quando a situação se torna intimista e triste, muda o seu semblante com absurda facilidade, como na cena já clássica em que após o recital da filha, ambos estão sob a luz das estrelas e ele pede para que ela cante para ele. Kotsur merece todos os prêmios que já ganhou e está concorrendo pelo papel, entre eles, o Oscar de Melhor ator Coadjuvante, fazendo dele o primeiro ator surdo a ser indicado ao Oscar em 94 anos de premiação — e com chances reais de levar a estatueta para casa.

Representatividade
No Ritmo do Coração (CODA, que em inglês significa Child of Deaf Adults) é um remake de A Família Bélier, um filme francês lançado em 2014, que mesmo com um estrondoso sucesso de bilheteria, sofreu com críticas negativas ao usar atores ouvintes nos papéis de personagens surdos. Apesar de ser ouvinte, a diretora Sian Heder, acertadamente — como não poderia deixar de ser em pleno 2021 — escalou atores surdos para os papéis, além de grande quantidade de intérpretes no set de filmagens. Uma decisão que não apenas é importante por trazer autenticidade e nuances às atuações, mas também para que as cenas de humor relacionadas à surdez dos personagens estivessem no lugar certo e feitas pelas pessoas certas.

Existe uma pseudo-discussão acerca da simplicidade do filme no contexto de premiações entre cinéfilos e aficionados. De acordo com alguns comentários, o filme não é exuberante o bastante para a premiação. Bom, em primeiro lugar essas opiniões são totalmente sem fundamento. Existem vários níveis e tipos de exuberância. Se A Tragédia de Macbeth é exuberante em sua fotografia em preto e branco contrastante; Drive my Car é exuberante em suas longas cenas que nos causam reflexão; Ataque dos Cães é exuberante pela locação; e Amor, Sublime Amor é exuberante em suas cores vivas e seus números musicais super elaborados; No Ritmo do Coração, por sua vez, é exuberante por ser singelo, tocante e mais intimista, alimentando o coração dos fãs do “cinema do cotidiano”, que simplesmente querem assistir um filme que os faça rir e chorar na medida certa, sem se preocupar com tragédias devastadoras no terceiro ato. Ou, simplesmente, não querem um filme barulhento e espalhafatoso.

Como resultado desta produção tão necessária, o filme foi sucesso de crítica em todos os festivais por onde passou, sendo indicado também ao Oscar de Melhor Roteiro Adaptado (Sian Heder). Curiosamente, assim como aconteceu com King Richard, No Ritmo do Coração não recebeu indicação para Melhor Direção. O que nos leva a indagar duas coisas: será que os votantes pensam que o filme se dirigiu sozinho, ou será que para eles, a indicação apenas uma mulher na direção (Jane Campion, por Ataque dos Cães) já estava de bom tamanho?


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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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