Entrevista: professora Ligia Fonseca Ferreira


A professora Ligia Fonseca Ferreira, da Universidade Federal de São Paulo, nos concedeu uma entrevista na qual responde perguntas sobre sua trajetória acadêmica pesquisando a vida e obra de Luiz Gama. O conjunto de suas respostas é uma verdadeira aula sobre a produção do autor.

Confira abaixo a entrevista em áudio ou texto.



1) Professora, quando foi seu primeiro contato com a obra do Luiz Gama e como foi seu percurso de pesquisa acadêmica?

Meu primeiro contato com a obra de Luiz Gama, por incrível que pareça, se deu no período em que morava na França. Foi ali no início dos anos 90. Eu morava na França por questões pessoais, particulares, mas fazia meus estudos lá, porque eu venho da área de didática de FLE, de francês língua estrangeira, do ensino de línguas estrangeiras de modo geral, enfim, dos estudos franceses, e na França eu era professora de português para estrangeiros. Dava aula de Língua, Cultura e História em colégios e liceus e num dado momento eu comecei a me interessar pelas manifestações literárias de escritores e escritoras negras no Brasil. 
Eu fiz um primeiro trabalho que era uma espécie de mestrado francês (mas esse não é exatamente o mesmo perfil do mestrado brasileiro). E eu, justamente por me interessar pelas manifestações de escritas negras em São Paulo, do final do século 19 aos anos 60, eu acabei por traçar esse grande panorama, apoiada na pouca bibliografia que naquele momento existia, descobrindo a figura do Luiz Gama, com a qual eu nunca tinha me deparado nem na graduação, nem em outros momentos da minha vida da minha formação acadêmica no Brasil. É muito curioso, essa descoberta se deu lá na França.
2) A senhora é uma pesquisadora que tem se dedicado a tornar conhecida não só a biografia do Luiz Gama, mas também a produção literária e intelectual dele. Das descobertas que fez durante suas pesquisas, qual que mais causou espanto, no sentido de deixá-la impressionada?
É verdade. Eu acho que eu me dei um propósito, um objetivo, que é o de tornar conhecida a obra do Luiz Gama. 
O que foi me espantando aos poucos foi descobrir que quando eu comecei a estudar o Luiz Gama foi como se ele fosse autor de um único poema, que é o poema “Quem sou eu?”, também conhecido impropriamente como “Bodarrada”, e a carta a Lúcio de Mendonça. Era o que era mais conhecido sobre o Luiz Gama, e aos pouquinhos, então, eu comecei a trabalhar e a descobrir a obra poética, e consegui localizar a primeira edição que era uma primeira edição que nunca ninguém havia realmente… Os trabalhos póstumos, outras edições do século 20… referiam mas nunca haviam feito comparações com a edição de 1861. 
O Luiz Gama me reservou várias surpresas. A primeira delas foi essa descoberta da primeira edição. Eu tive a comprovação de ter sido uma das primeiras pessoas a realmente cotejar as duas edições. Eu fiz isso como um trabalho para minha tese, depois para edição do livro Primeiras trovas burlescas e outros poemas que reúne toda produção poética de Luiz Gama. A das Primeiras trovas e a também que foi publicada esparsamente na imprensa. Então a primeira grande surpresa foi a de ter localizado nos anos 90 esse exemplar que hoje encontra-se até disponível digitalmente através da Biblioteca Brasiliana Mindlin, mas eu consultei esse exemplar e foi uma grande emoção ter tido nas minhas mãos um exemplar da primeira, raríssima edição, do Primeiras trovas burlescas. Eu precisei copiar à mão, passei ali umas boas semanas na biblioteca José Mindlin ainda, aqui em São Paulo.
E ver assim a variedade de poemas, em geral as pessoas conheciam mais este poema que eu mencionei, o “Quem sou eu?” ou “Bodarrada”, como se costuma dizer. Normalmente esse poema, inclusive, é muito citado de uma maneira truncada, ele é um poema bastante longo.
Então descobrir e depois poder editar comentário na minha tese, essa primeira edição junto com a segunda, que é a edição de 1861, foi para mim o grande impacto, de ver que mesmo nesta obra poética de Luiz Gama, de 1859, o poeta satírico, poeta lírico… enfim, o Luiz Gama era muito maior do que normalmente ele costumava ser apresentado. Acho que foi uma descoberta, realmente foi uma descoberta, sobre a qual inclusive eu escrevi recentemente. Agora em agosto saiu um artigo meu na Revista Estudos Avançados da USP, que se  chama “Luiz Gama autor, leitor, editor: revistando as Primeiras Trovas Burlescas de 1859 e 1861”. Por que? Porque o contato com esse livro, além da descoberta, o contato físico com esse livro e com as duas edições, no caso, com essa primeira e depois também cotejando com a segunda, através de uma leitura dos paratextos, que são as epígrafes, as dedicatórias, as advertências, as erratas… então aparecia além dos próprios textos dos poemas, aparecia ali outros gestos, outras figuras do Luiz Gama. 
Esse Luiz Gama autor, o primeiro autor negro, de uma enunciação negra, primeira voz negra na literatura brasileira, mas também um Luiz Gama que estava presente ali na própria confecção dos seus livros. E um Luiz Gama que além da sua obra edita a obra de um outro autor, que é o José Bonifácio, o moço. Então ele também acreditou e teve uma intenção muito clara, que eu não vou poder detalhar aqui, mas eu sugeriria que fosse mencionada a leitura desse meu recente artigo.
E foram tantas outras descobertas… Elas já foram apresentadas na minha tese de doutorado que eu apresentei na França em 2001, até porque na França se faz uma exigência de se trazerem elementos novos, fontes novas, enfim, que a gente apresente realmente uma descoberta como no campo científico. Então eu acho que um outro produto dessas minhas descobertas e que foram me fascinando. 
Eu acabei reunindo no livro Com a palavra, Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas, e tem mais duas sessões que eu não menciono, que é a morte de Luiz Gama vista através da imprensa, e relatos de alguns de seus contemporâneos sobre ele. À medida que eu também fui além da obra poética, dos livros, digamos assim, do Luiz Gama na literatura, esse Luiz Gama presente também na imprensa foi outra grande surpresa. Por que? Vou dar um exemplo: em 1944 tem uma obra do Luiz Gama que é organizada por um jornalista negro, baiano, que reside em São Paulo e trabalhava na grande imprensa e também na imprensa negra da época. Ele reuniu em um volume chamado Obras completas de Luiz Gama, as Primeiras trovas burlescas, só que ele não cotejou as edições de 1859 e 61, ele baseou-se  em uma edição póstuma, e ele coloca em apêndice a carta de Luiz Gama, a famosa carta a Lúcio de Mendonça. E ele coloca três artigos de jornal e ele, na advertência, numa nota ao leitor, diz que foi tudo que ele havia conseguido reunir. Então eu consegui reunir um pouco mais para a minha tese e depois para esse livro que se chama Com a palavra, Luiz Gama. Então em 1944 foi possível ler três artigos de Luiz Gama. Com a minha tese, quando eu organizei essa grande antologia, Com a palavra, Luiz Gama, nós tínhamos ali 19 artigos de jornal. Então essa foi uma outra descoberta que me deixou feliz, além de poder trazer à tona também, reunido nesse livro, alguns outros textos de Luiz Gama. Um conjunto de cinco cartas, que também não haviam sido apresentadas antes e uma série de artigos onde amigos contemporâneos de Luís Gama falam dele. 
Então nesse sentido, o espaço no tempo é grande porque essas pesquisas são demoradas, mas eu acho que essas grandes descobertas, na verdade não existe uma, mas essa sequência de descobertas, e que vão também fazendo com que eu possa alimentar e ajudar e ampliar este conhecimento de um Luiz Gama que é um autor bastante variado, bastante diverso. Como eu costumo dizer: um autor multifário, que não é um autor muito simples, e nem poderia ser, dada a natureza dos temas, dos gêneros que ele pratica.
E me surpreendeu também dentre as tantas descobertas entre os poemas, o fato do Luiz Gama ter escrito os primeiros poemas que se tem notícia louvando a mulher negra, como “Meus amores” e a “Cativa”.
3) Uma das suas afirmações é que Luiz Gama antecipou a literatura negra brasileira porque em sua produção poética marcou-se enunciativamente como um escritor negro, como é possível perceber em seus poemas. Com isso em mente e sabendo que Luiz Gama foi um abolicionista que advogou pelos escravizados, conseguiu liberdade para mais de quinhentos, a senhora diria que ele foi um homem de seu tempo ou foi um visionário?
Eu acho que o Luiz Gama antecipou uma literatura negra que ele talvez nem pudesse imaginar como que ela se desdobraria, aconteceria no século 20, mas ele tem consciência, no seu tempo, que ele está criando algo novo. Ele tem uns versos que eu gosto muito: “Se de um quadrado fizeram um ovo, nisso dou prova de escritor novo”. Eu costumo dizer que o Luiz Gama sabia muito bem que ele não estava apenas manipulando figuras geométricas. Acho que ele tinha consciência de que ele era um fenômeno novo dentro da literatura brasileira ao introduzir essa sua enunciação negra, sua voz negra. 
O seu pioneirismo não se deve ao fato de ser ele um autor de pele negra, mas de ter instaurado essa voz, essa enunciação através de seus poemas satíricos, e poemas líricos também de Primeiras trovas burlescas
Eu acho que o Luiz Gama foi uma figura totalmente imersa no seu tempo. Eu acho que ele foi totalmente imerso, tanto do ponto de vista literário, quanto do ponto de vista do seu ativismo abolicionista republicano. Ou seja, ele estava lidando com as grandes questões brasileiras e atuando ali onde era necessário, e através de uma vivência, mais do que uma perspectiva. Ele não tá olhando para alguma coisa, ele viveu a experiência. Ele era negro, ele nasceu de uma africana, ele foi escravizado, ficou escravizado por oito anos, conseguiu judicialmente resgatar sua própria liberdade e depois se torna o abolicionista e o republicano que nós conhecemos. Então eu acho que aí o Luiz Gama foi um homem do seu tempo. Ele foi um visionário também e eu acredito que o seu legado sim, esse que ele foi fazendo à medida que as situações foram se apresentando. 
Luiz Gama não é uma pessoa que tinha um projeto literário… inclusive os seus artigos na imprensa eram o resultado de situações e de posições que eram exigidas dele no cotidiano. Agora, para nós, e isso é uma coisa que a gente precisa reconhecer e eu fico muito feliz se eu puder estar ajudando nisso, este legado sim é um legado que eu acho que será eterno. Não estarei mais aqui, nós não estaremos mais aqui, mas esse legado de Luiz Gama e essa obra que eu desejaria que hoje e as gerações futuras também conhecessem, são a meu ver, a prova de que o Luiz Gama, sem ter se programado para isso, conseguiu deixar uma marca que nós temos que descobrir, reconhecer, reverenciar. Que é para muito além do seu tempo e eu diria também para muito além desse tempo que nós vivemos agora.
4) Para um leitor, estudante ou alguém interessado em conhecer o Luiz Gama, por onde indicaria que iniciasse esse percurso? Pela obra poética, cartas ou artigos dos jornais? Qual dos livros que a senhora já publicou pode ser utilizado para esta finalidade?
O Luiz Gama, como eu costumo dizer, não é um autor simples e ele é um autor que tem um apelo para vários perfis de leitores. Além das pessoas interessadas em conhecer um pouco mais sobre essa figura histórica, é verdade que o Luiz Gama tem um apelo para pessoas da área de Letras, para estudantes de Direito, para estudantes de Comunicação e para estudantes de História, naturalmente. Inclusive, de Ciência Política. Eu acho que ele nos dá toda essa abertura.
Para as pessoas que estão interessadas em conhecer o Luiz Gama, eu recomendaria, até para a gente ter esse panorama bem amplo do autor, eu recomendaria que eles começassem pela obra Com a palavra, Luiz Gama. Além dos textos do próprio Luiz Gama, faço uma apresentação da obra, de quem é o Luiz Gama, tem uma cronologia, e cada uma das seções para auxiliar o leitor. Porque são obras que podem não ser muito fáceis de se decodificar.
Luiz Gama, como eu falei, é uma autor complexo. A gente precisa estar armados de referências históricas, fornecer elementos contextuais, contextualizar do ponto de vista às vezes até do próprio suporte que aparece no texto de Luiz Gama e na poesia também. Acho que talvez se ler direto Luiz Gama, não se terá, e no caso eu digo isso modestamente, uma contextualização, o lugar que ocupa essa produção das Primeiras Trovas burlescas e demais poemas publicados na imprensa. Talvez não se tenha a dimensão do que elas representam dentro do panorama literário. Então eu começaria por aí. Além de seu livro que eu fiquei muito feliz com o seu resultado final porque ele também é uma marca muito forte do Luiz Gama.
O Luiz Gama foi uma pessoa da imagem. Ele foi um dos pioneiros da imprensa ilustrada em São Paulo. Ele participou como redator, colaborou em jornais como O Diabo Coxo, O Cabrião, que foram os primeiro semanários ilustrados da cidade de São Paulo e que falavam muito do cotidiano não só da cidade, da província, mas do país. No momento em que isso acontece, que é o início da carreira jornalística de Luiz Gama, ele está mergulhado de 1864 até 1870, toda sua atividade jornalística porque daí ele não voltará mais a nenhum projeto literário, estava inserido nesse Brasil, nesse período aí, mergulhado na Guerra do Paraguai, que uma coisa que mexeu profundamente. 
Mas eu acho que o que é muito interessante nesse livro o leitor pode começar, sempre bom começar pela apresentação, com meus ensaios introdutórios de cada sessão, já dá um panorama e orienta o leitor para o que ele vai ler e depois, dentro de cada sessão eu acho que vai se tendo um panorama bem interessante, montando um quebra-cabeça dessa biografia de Luiz Gama, que é uma pessoa que fala muito de si. Quando eu digo “Com a palavra, Luiz Gama” é porque não só ele é um grande comunicador, como ele se expressa muito na primeira pessoa, portanto ele vai conversando muito com seu leitor.
É possível, talvez, começar pela carta de Luiz Gama porque na minha edição ela aparece bastante contextualizada. Ler esta carta junto com as demais, depois ir, talvez, para alguns dos artigos que são mais ou menos da mesma época, ou começar pelos artigos. O que eu estou dizendo aqui é que nesse livro para um leitor neófito, que está iniciando, ele pode fazer uma leitura através das notas, das referências, das alusões, das chamadas que eu faço de uma nota de um texto para o outro, eu acho que ele pode ir construindo uma leitura e uma visão desse homem de letras, desse homem da escrita, desse homem negro, ex-escravo, que viveu no Brasil escravocrata, morreu antes da Abolição e da República, mas que dominou, conquistou a palavra, que foi não só uma outra liberdade, mas foi através dela que ele consegue dar a liberdade aos escravizadas que ele ajudou se verem livres do cativeiro. Ou como ele dizia, pessoas que ele arrancou do crime [da escravidão]. Aquelas 500 pessoas, em 1880, ele faz esse balanço, justamente nessa carta. 500 pessoas que ele tem arrancado das garras do crime e o crime era a escravização ilegal porque já havia, desde 1831, uma lei no Brasil que proibia o tráfico negreiro. E Luiz Gama, pioneiramente, entre as várias ações pioneiras que ele nos legou, ele conseguiu resgatar, puxar essa lei e fazer com que ela ficasse valendo porque na verdade ela nunca tinha sido revogada.
5) Se tivesse que sintetizar todas as descobertas que fez a respeito de Luiz Gama, o que esperaria que as pessoas tivessem em mente quando pensarem nele?
Todo esse trabalho, por exemplo, como eu disse no início, porque eu tenho essa preocupação, que eu tenho esses propósito de trazer a obra de Luiz Gama à tona, de fazê-la conhecida, é porque Luiz Gama não pode se resumir a uma estátua de bronze, a um monumento, a um busto no Largo do Arouche, àquela imagem do libertador dos escravos que ele foi, o patrono da Abolição, agora herói da Pátria desde o ano passado, porque o Luiz Gama tem uma história, tem uma identidade. A identidade dele que é tão singular e atípica para o momento que ele viveu. Ele não se resume também a um único poema, quer dizer, o Luiz Gama tem uma densidade, uma complexidade que parece, às vezes, que os brasileiros não acreditam. 
Então às vezes é mais fácil referenciar um líder, uma história que se passa no exterior, nos Estados Unidos, personalidades da afro-diáspora e a gente não acredita, parece, que nós tivemos uma figura excepcional. Então eu queria que as pessoas tivessem em mente que ele foi um homem que passou pelas experiências duras que ele passou em vida, mas que ele conseguiu algo que é fantástico: dominar a palavra. Escrever no momento em que o negro não escreve, não se está habituado a isso. O negro, sobre ele recaia com muito mais força, naquele momento, o estigma da sua incapacidade congênita, da sua impossibilidade de criar no campo das ciências e no campo das letras. Luiz Gama até refere-se a isso nos seus poemas. Eu gostaria que ele fosse lembrado como um pensador, um intelectual, e um homem que dominou não só a escrita literária, escrita jornalística, mas como ele mesmo diz, a ciência jurídica, que é de uma complexidade imensa. Lembrando que Luiz Gama não frequentou, e ele reforça isso, ele repete isso em vários textos, ele nunca frequentou a Academia. Então ele não tem educação formal. Ele é esse exemplo que eu acho que é grandioso. E hoje muito valorizado até quando a gente pensa. Ele, que era um homem também da leitura, recomenda ao seu filho que seja um apóstolo do ensino, então a gente vê hoje este apelo importante para a educação, para a auto formação, para o exercício do pensamento.
Então o Luiz Gama é mais do que a estátua de bronze, ele é mais do que um patrono de abolição, ele é essa figura em 3D… mas ele é para mim essa figura gigante que nós temos e que nós precisamos aprender a cultuar porque ele tem muito a dizer. Em seu século ele teve uma palavra de influência, nós precisamos lembrar disso, que foi apagado pela História oficial: Luiz Gama teve uma palavra de influência, e eu acho que essas palavras de Luiz Gama precisam ecoar até nós.
6) Além de Luiz Gama, quais outros escritores e obras, de qualquer tempo, considera fundamentais para um leitor brasileiro?
Eu acho fundamentais a leitura… É verdade que eu estou bastante mergulhada na obra de Luiz Gama, mas nas relações que ela pode ter com escritos de outros autores ou autoras negras. Então para ficar só ali no século 19, dentro de um campo que permite essas relações intertextuais e interdisciplinares, obviamente, que nós podemos ler a obra de Maria Firmina dos Reis, que foi uma autora afrodescendente, que escreveu o primeiro romance de cunho abolicionista, Úrsula. Eu acho que é fundamental ler até porque esse romance foi lançado no mesmo ano que o Primeiras trovas burlescas, em outro lugar, lá bem distante, não havia essa comunicação que temos hoje, mas foi lançado lá no Maranhão.
Então acho importante ler Luiz Gama e é também importante ler o Machado de Assis. Uma aproximação que pode não parecer muito muito evidente. Até a convite meu e de um colega da USP, organizamos um evento em 2017, Jornada Machado-Gama, no dia 21 de junho de 2017, no Instituto de Estudos Avançados. Nós convidamos um professor da Unifesp, professor Pedro Marques, para fazer uma aproximação, a tentar fazer uma leitura da poesia de Luiz Gama e da poesia de Machado de Assis. Saiu uma coisa linda, que é o artigo dele que se chama “Do ouvir e ler poesia: Luiz Gama e Machado de Assis”. Todas essas ligações, essas conexões, essas sinapses, são muito novas, são muito recentes. Elas têm quatro, cinco anos.
E eu acho que é importante também ler uma figura que eu acho que nós precisamos resgatar urgentemente que é Cruz e Sousa. Estou citando aqui apenas esses nomes que são maravilhosos. Acho que também temos aí uma uma série de relações entre o que escreve Luiz Gama, com o que escreve, logicamente, o Cruz e Sousa, tanto em poemas como textos em comum. “O Emparedado”, esse poema em prosa que fala muito dessa dessa vivência num outro plano mais angustioso do que o de Luiz Gama, ele que era muito mais novo, mais de 30 anos mais novo que o Luiz Gama.
Ler em rede o Luiz Gama com o Machado, com Cruz e Sousa, com Maria Firmina, com Lima Barreto. E sem contar também, depois, este grande veio… e eu conheço mais a literatura e os escritos produzidos em São Paulo a partir da década de 20 e 30, a imprensa negra e outros escritos. 
Eu acho que o Luiz Gama estará presente também nesta literatura negra hoje bem mais consolidada do que ela já esteve há 10, 15, 20 anos. A gente encontra ecos da sua voz entre as autoras, tanto como entre os autores. Lembrando que o Luiz Gama deixou a imagem… eu costumo sempre dizer isso, Luiz Gama deu à luz a sua mãe, Luiza Mahin, porque através dos seus textos, da carta a Lúcio de Mendonça, que nós soubemos da existência dessa mulher, que até já foi objeto de romances e é uma figura cultuada, mitificada, pelo pelo feminismo negro. Mas eu acho que é importante também a gente lembrar isso. Uma vez eu até falei, não foi de uma maneira nem irônica, que o Luiz Gama, ele também sem saber, obviamente, ele acabou dando uma contribuição para o feminismo negro no Brasil. 
Então acho que seria isso o que eu tinha a dizer. Espero que não tenha ficado muito complexo.

Uma resposta

  1. Entrevista incrível, tanto entrevistadora como entrevistada.
    Deveríamos ter mais entrevistas como essa . Parabéns!

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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