Especulações sobre sexualidade e representatividade em sonetos de Shakespeare

 

Como devemos absorver uma possível representatividade homossexual – ou, nesse caso – bissexual em uma obra escrita em uma época em que essas noções de orientação nem sequer existiam? Melhor: devemos nos apegar a qualquer fiapo de visibilidade, já que assim nos sentiremos finalmente reconfortados e representados, ainda que o que estamos abraçando, sequer existiu de verdade, já que as identidades gay e bissexual não existiam de fato? Será que fazemos isso com tanta facilidade porque a solidão causada pelo abandono da família e amigos é tão dolorosa e impossível de suportar, e porque nos encontramos sem afeto na maioria do tempo?

O poema:

Um rosto de mulher a natureza
Te deu, amo-senhora e meu amor;
Coração de mulher, sem a fraqueza
De amar mudanças, seu maior pendor;
Olho mais vivo e bem menos fingido
Em seus volteios, dourado o que fita,
Homem na forma e das formas servido,
Que os homens olham e às damas excita;
Para mulher, de início foste feito,
Até que a natureza impeditiva
Numa adição de que eu nada aproveito,
Te deu a mais o que de ti me esquiva;
Pois te fez membro do ardor das mulheres,
Ama-me! E a elas dá o que tiveres.

Henry Wriothesley

William Shakespeare: Sonetos (publicado pela editora L&PM com tradução de Jorge Wanderley) contém 154 poemas divididos em duas partes: a primeira contendo 126 poemas é “supostamente” dedicada a Henry Wriothesley (mais conhecido como Southampton). Henry é descrito como “jovem, belo, loiro, e de feições delicadas como as de uma mulher” (verso 1), além de possuir beleza notória. Não custa nada lembrar, aliás que outros dois poemas escritos por Shakespeare também são dedicados a ele: “Venus and Adonis” (1593) e “The Rape of Lucrece” (1594).

Tarquin e Lucretia, por Tiziano Vecelli

Venus and Adonis, by Tiziano Vecelli

Já a segunda parte é dedicada a uma certa “Dark Lady” com quem Shakespeare teve uma relação conturbada. Para simplificar: Dark Lady era uma mulher negra que Shakespeare se apaixonou enquanto mantinha sentimentos por Henry; este, por sua vez, a pedido de Shakespeare, atua como cupido. Mas em uma reviravolta metalinguística, digna das comédias do próprio bardo, Henry também se apaixona pela mulher. Há boatos, inclusive, de que o trio chegou realmente a viver junto.

Agora, confessando que ele é teu,
E hipotecado eu mesmo ao teu desejo,
Dou-me em penhor para que o outro eu
Me restituas, graça que eu almejo.
Mas tu recusarás; a ti restrito,
Que és cobiçosa, é ele um indefeso;
Quanto ele me endossava por escrito,
Tanto depressa a ti ficava preso.
Tu vais tomar de tua graça a fim
De (usurária que avanças num só lance)
Cobrar de quem se endividou de mim;
E eu o perco ao fazer que me afiance,
Perdi-o, pois, e aos dois tens em penhor;
Tudo ele pagam e eu sigo devedor.

(Soneto 134, página 291)

Essa segunda parte é famosa pelo seu teor sexual, carnal e abusado, contrastando com ideia de “amor puro e espiritual” que permeia a sessão dedicada ao jovem branco e rico. Se quisermos levar essa análise realmente a fundo devemos fazer uma leitura não somente sexual, mas também racial, que demonstra uma proto-erotização da mulher negra, já que de acordo com estudiosos, o modo que ela é descrita por Shakespeare pode significar uma descendência africana.

Mas quão “somente” espiritual foi esse amor? Será apenas mais um caso de amor platônico que, mais de 500 anos depois é transformado em fanfic por almas carentes de representatividade na literatura? Várias vezes Shakespeare escreve “Meu querido amor” ao se referir a Henry, e no soneto 15 ele escreve que “está em guerra com o presente por causa daquele amor”. Seria “presente” um eufemismo para seus desejos verdadeiros, ou para seu casamento aos 18 anos com Anne Hathaway, então com 26 anos? (Shakespeare abandonaria sua mulher e os 3 filhos após 3 anos de casamento para viver em Londres. Especula-se que ele manteve relacionamentos com vários homens e mulheres durante esse período).

Ademais, se levarmos em consideração a obsessão de Virginia Woolf com Shakespeare, chegando inclusive a chamá-lo de “o exemplo primoroso de mente andrógina masculino-feminina podemos traçar um interessante paralelo entre várias partes do soneto, inclusive o “amo-senhora” do verso número dois com Orlando, protagonista de “Orlando: Uma Biografia”:

Para mulher, de início foste feito,
Até que a natureza impeditiva
Numa adição de que eu nada aproveito,
Te deu a mais o que de ti me esquiva;
Pois te fez membro do ardor das mulheres,
Ama-me! E a elas dá o que tiveres.

Sabemos que há séculos a sexualidade do autor é tema de discussões acaloradas, e mesmo que até hoje nada tenha sido comprovado, o que para mim é o aspecto mais fascinante, já que qualquer que seja a sua sigla no LGBTQIA+, você tem o direito de se sentir representado na obra shakesperiana sem que ninguém possa te dizer o contrário.

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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