A importância da memória e a busca por si em “Eu sou macuxi e outras histórias”, de Julie Dorrico

Julie Dorrico nasceu nas terras da cachoeira pequena, mais conhecida como Guajará-Mirim. Porém, como ela mesma diz, foi às margens do Rio Madeira onde cresceu ouvindo as histórias que sua mãe contava “dessas gentes que viviam lá quando acaba o Rio Amazonas”. Doutora em Teoria Literária pela PUC-RS e curadora de literatura indígena, Dorrico faz de seu Eu sou macuxi e outras histórias (Caos & Letras) um grande resgate de sua ancestralidade. Mas não só.

Como bem pontua Daniel Munduruku em seu prefácio, O caminho de volta, “o esquecimento não é uma possibilidade para quem se abre à circularidade e a deixa invadir, ainda que disfarçada de conhecimento acadêmico. É certo que saber é bom. Ele preenche. É certo também que o vazio é melhor. Ele nos dá possibilidades.” E é isso que Dorrico faz. Ainda segundo as palavras de Munduruku, a autora “fez o caminho de esvaziar-se para ser preenchida pela memória e pelo pertencimento”. E a memória, como fica evidente em suas palavras, é força motriz e imprescindível para que o seu caminho de volta seja possível. É por meio das lembranças embebidas em afetos que a narradora de Eu sou macuxi e outras histórias faz esse mergulho para dentro de si e se abre a uma outra perspectiva de vida cabível.

Nas dez histórias contadas em Eu sou macuxi e outras histórias, Dorrico nos leva para uma terra onde se pisa descalço, onde o ar que se respira é puro. Sentimos o gosto do bejú como sentimos a presença dos seres encantados, de tão palpável é o seu texto. E como a narradora-autora deixa claro, ela criou sua própria língua. Como não pôde fugir do verbo que a formou, juntou outras duas (o inglêxi e o macuxês) para contar essas histórias, pois para ela não há dúvidas: o seu mundo precisa ser criado dia após dia. Mas de novo, não só. Ao fazer esse movimento, Dorrico faz de seu texto um organismo não só vivo, como livre. Como se ele caminhasse solto pela mata afora, como se fosse um texto-gente. Ora se faz verso, ora se faz prosa. E quando quer, se faz castanheira também. Tudo isso ditado por um ritmo único, quiçá percussivo, que diversas vezes faz com que suas palavras pareçam estar sendo cantadas. Fica difícil não se embalar.

Foto: Acervo pessoal/ divulgação

Vale mencionar também que a escrita poética de Dorrico não está sozinha. Ela vem muito bem acompanhada pelas belas ilustrações de Gustavo Caboclo, que assim como a autora, tem seu processo artístico e criativo guiado por esse retorno à sua origem indígena. E embora o texto de Dorrico não precisasse delas por conta de seu caráter imagético, e que por si só se sustenta, ele só teve a ganhar. E assim, caminhamos pelas histórias de sua mãe, de sua bisavó, de como a Mãe-Terra ao ver Makunaima e os manos brincando na roça quis criar outro filho, que não gostou de ser amarelo, quis ser branco, se rebelou e tentou vendê-la; e é assim que descobrimos que não há fronteira para o pertencimento, e que antes de morrer da vida, dá para se morrer de tristeza; e claro, é também assim que ficamos sabendo de como foi seu encontro com Makunaima, aquele que criou sua avó e de quem ela é filha.

Em seu livro Julie Dorrico não conta só a história de seu povo, os macuxis, mas também a história de diversos parentes. A autora faz questão de contar que além de serem filhas e filhos de Makunaima e outros deuses, eles também são a terra. E deseja que assim como sua avó e os xamãs um dia fizeram com ela – e que ela hoje faz com a sua literatura –, que todos também possam um dia contar isso aos seus filhos. E ela o faz de maneira tão cuidadosa que consegue até mesmo tratar passagens mais pesadas de maneira delicada e bonita. Por fim, em Eu sou macuxi e outras histórias, Julie Dorrico também nos dá mais uma prova daquilo que muita gente já diz, mas ainda assim tantos custam a dar ouvidos: a literatura feita fora do sul e do sudeste, sobretudo no eixo Rio-São Paulo, é riquíssima e tem tanto (ou até mais) a oferecer quanto aquela feita pelos descendentes do deus branco. E que diferente da mesmice acomodada de tanta gente que sempre pôde ocupar esse lugar de autoria, há outras narrativas. Narrativas essas que são pimenta, panela de barro, cobra, damorida, onça, olho puxado, cabelo preto e cor amarela.

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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