Exposição “Carolina Maria de Jesus: Um Brasil para os brasileiros”

“Escrevo todos os dias” – Carolina Maria de Jesus

Sugestão de música para escutar durante a leitura dessa resenha crítica sobre a exposição Carolina Maria de Jesus: Um Brasil para os brasileiros: https://www.youtube.com/watch?v=t3dzlAr4euo

Primeiro é preciso dizer que a Carolina Maria de Jesus é a minha escritora favorita. Quando eu li Quarto de despejo em 2015, eu tive uma sensação que eu nunca havia sentido ao ler um livro, eu percebi que apesar de tudo, a arte é possível. Acho a Carolina uma artista nata, nada a impediu de ser uma grande artista, é isso que podemos ver em sua obra. Embora Carolina tenha sido muito estigmatizada a potência artística dela está lá, a elite intelectual pode até tentar, mas torna-se cada vez mais difícil negar o talento dela.

Em Quarto de Despejo percebi o quanto Carolina era uma grande narradora. Me toca muito a forma como ela transforma o cotidiano em potência estética. E no diário dá pra ver como a escrita dela muda, depois que ela saca que os diários serão lidos, e ela faz isso sutilmente, sempre achei este um dos pontos altos do livro.

Eu também gosto muito do disco Quarto de despejo, tem muita força poética e musical. Adoro principalmente as marchinhas. Carolina era alguém que circulava no espaço público e modificava o espaço. Isso é o que uma artista pode fazer. Ela escreveu diários, romance, poesia, peça de teatro, música. Ela criava fantasias de carnaval. Queria ser atriz, cantava e tocava. Uma artista multitalentosa. Uma vez ela costurou uma fantasia de carnaval com penas de galinha carijó e lâmpadas que acendiam no vestido. Imaginem essa engenhosidade!

Ela sabia do poder da palavra, entendia a arte e o fazer literário, mas ao longo de sua trajetória, dá pra ver o quanto o racismo e as injustiças sociais atrapalharam a projeção dela. Fica evidente o quanto a arte é um poder da classe dominante. A crítica literária nunca deu a devida atenção à produção dela, mas recentemente, a obra de Carolina Maria de Jesus tem sido mais comentada e há um interesse crescente na preservação da obra que ela criou. Em 2020 comemoramos os 60 anos de publicação do livro Quarto de Despejo e em 2021 foi aberta a exposição Carolina Maria de Jesus: Um Brasil para os brasileiros, sobre a qual comentarei aqui.

Antes de tudo, save the date, e independente de tudo que vou dizer, recomendo fortemente a todes que estão lendo essa resenha: se estiver em São Paulo, vai lá ver a exposição que ficará aberta até o dia 27 de março. Prestigiem a exposição de Carolina!

Carolina Maria de Jesus: Um Brasil para os brasileiros está ocupando dois andares do Instituto Moreira Salles de São Paulo. Além do acervo sobre a Carolina Maria de Jesus, linha do tempo, fotografias. trechos das obras, materiais da imprensa da época e depoimentos de outras escritoras negras e mulheres negras ativistas, a exposição também conta com obras de artistas negros e negras que dialogam com a produção de Carolina Maria de Jesus.

Pintura de Heitor dos Prazeres

Eu comecei pelo último andar do IMS (studio) que era o começo da exposição. Fiquei um pouco com a impressão de que as obras dos outros artistas da exposição, chamavam tanta atenção quanto o material que havia sobre a Carolina. Mas ainda havia outro espaço para ver. Nesse primeiro espaço expositivo começamos a conhecer um pouco da biografia dela e das suas obras produzidas. Neste andar também é possível escutar o disco Quarto de despejo enquanto contemplamos a exposição. Gostei muito disso. (Escute agora: https://www.youtube.com/watch?v=t3dzlAr4euo0).

A visita me trouxe boas surpresas e também dados que eu não tinha sobre Carolina Maria de Jesus e que me deixaram muito curiosa para pesquisar mais. Fiquei muito interessada na relação dela com o teatro, por exemplo, ela queria ser atriz e em 1961, Quarto de despejo teve uma adaptação para o teatro feita pela escritora Edy Lima, o espetáculo tinha a direção do Amir Haddad (que eu gosto bastante) e a atriz Ruth de Souza (do Teatro Experimental do Negro, liderado por Abdias do Nascimento) interpretando a Carolina. Sobre essa parte havia várias fotografias na exposição, além de materiais de imprensa e vídeos com entrevistas sobre a montagem. Aliás, a Carolina não só foi contemporânea do Abdias do Nascimento, como eles também nasceram no mesmo dia. Não é interessante? Eu fiquei muito curiosa para saber mais sobre as confluências desse contato na produção deles. O que gostei bastante também foram as fotos tiradas pela fotógrafa Zélia Gattai. O olhar dela sobre a Carolina é muito sensível. É comum vermos a Carolina sendo retratada nesse estereótipo de favelada, sempre com o lenço na cabeça, humilde, mesmo autografando os livros que foram produzidos e publicados inclusive fora do Brasil. Embora a Carolina esteja muito além disso, o foco sempre esteve mais na condição social dela do que no talento artístico. As fotos da Zélia Gattai, porém, trazem Carolina em várias outras nuances. Achei lindo esse interesse da curadoria em ampliar a visão que temos sobre Carolina.

Nos elevadores e nas escadas tem frases das obras da Carolina, de modo que fazer o trajeto de um andar para outro propõe uma continuidade na experiência estética da exposição. Já quando desci para o segundo piso da exposição, no andar debaixo, a minha impressão de que tinha muita coisa “ao mesmo tempo agora” competindo por um mesmo espaço se acentuou. A pesquisa sobre a Carolina ocupava as paredes do espaço expositivo e no meio havia as obras dos outros artistas e inclusive, alguns materiais que eu não consegui entender o que era porque não havia legenda. Tinha um livro do Hans Christian Andersen (O candeeiro mágico) no meio do espaço expositivo, mas nada escrito sobre, minha pergunta: por que estava ali? Em outro canto havia um caderno escrito à mão que eu imaginei que pudesse ser o diário dela original mas também não havia nada que confirmasse isso. Se fosse, não seria interessante dar uma atenção maior a isso?  Acho que em algumas partes faltou um cuidado, talvez algumas coisas sejam óbvias para quem pensa na disposição do acervo, mas não para o público.

Eu também gostei muito da proposta de relacionar à obra da Carolina com a de outres artistas. Estas fotos acima são da obra Quebradinha, do artista Nenê, que eu gostei demais! Ele é muito detalhista e produz essas maquetes com materiais de reciclagem. Assim como essa obra, havia outras interessantes em várias linguagens como audiovisual, pintura, escultura e instalação. Porém, tudo que havia ali em dois andares, poderia ocupar os quatro andares do IMS e isso poderia possibilitar uma fruição maior. Havia muito material no espaço e bastante gente circulando (o que é ótimo) e isso, do meu ponto de vista, torna o espaço expositivo um tanto caótico. Eu sou dessas que acha que menos é mais, se tem tanto material interessante para expôr, por que não ocupar pelo menos mais um andar? Para exemplificar o que eu estou dizendo, os vídeos poderiam estar em telas maiores, o disco poderia tocar nos dois andares, poderia ter legenda em tudo, poderia ter mais trechos das obras, etc.

A Carolina produziu muito, senti falta de ver a materialidade dela em texto. Enfim, de qualquer forma, temos que ir nessa exposição, quem conhece Carolina e quem não conhece. Talvez eu esteja com essa impressão porque tenho como referência as ocupações do Itaú Cultural e as exposições de literatura do Museu da Língua Portuguesa que sempre trazem autoras e autores de um jeito profundo e bem organizado, focando a exposição no que essas pessoas produziram. Minha impressão geral: A Carolina produziu muito, mas mais uma vez parece que não há espaço para ela, para a obra dela. 

O IMS hoje está tentando recuperar o acervo da Carolina que está em Sacramento (MG). Este trabalho de disputa patrimonial não é simples e vejo a exposição como o início de uma partilha do acervo. O acesso ao acervo da Carolina é fundamental para que a obra dela circule em outros cantos e seja estudada profundamente. Existe um material de pesquisa na exposição, que merece ser visto, apesar de eu voltar para casa com a impressão de que a distribuição espacial poderia estar melhor. Mas é aquilo,  vamos lotar essa exposição e pedir mais. Alô, IMS, queremos mais Carolina!

O IMS orienta que o público faça a reserva, mas esgota muito rápido. Eu consegui entrar sem reserva, mas cheguei lá no horário em que o IMS abriu. Sugiro, portanto, que quem não conseguir fazer a reserva, tente ir no horário de abertura da exposição, priorizando a visita durante os dias de semana. E não se esqueça de seu comprovante de vacinação!

Acesse o site do IMS para informações sobre datas e horários.


Participando do Clube Impressões: um espaço voltado para a leitura e discussão de obras ficcionais que levam a refletir sobre assuntos como raça, gênero e classe, e que promovam pensamento crítico sobre a realidade de grupos minorizados. Clique aqui para participar.

Clube Leituras Decoloniais: um projeto coletivo negro que conta com a curadoria de quatro mulheres negras que produzem conteúdo na internet sobre literatura decolonial. Clique aqui para participar.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

R$ 5.829/mês 72%

Participe do Clube Impressões

Clube de leitura online que tem como proposta ler e suscitar discussões sobre obras de ficção que abordam assuntos como raça, gênero e classe, promovendo o pensamento crítico sobre a realidade de grupos minorizados.