Por meio da utilização mandingueira e malandra da palavra os autores Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino constroem os ensaios sobre a elaboração da ciência encantada a partir da perspectiva que norteia a existência de Exu, sobretudo o que permeia o imaginário da divindade nas cosmovisões de África, trazido para o Brasil desde o período colonial. Os ensaios traçam elementos presentes nas encruzilhadas, no terreiro, nos tambores, no corpo forjado pelo material que compõe sua existência e traz perspectivas de como podemos imaginar formas de transpor os conhecimentos adquiridos com a prática para o mundo inventado e mantido pelo colonialismo.
A obra instaura tempos-espaços que ainda não estamos prontos para conceber sem ter a dimensão intelectual dos saberes orais e de como por meio deles um novo mundo pode ser criado, tendo em vista que para os autores o colonialismo é caracterizado por ser a morte física e simbólica através do desvio existencial, dessa forma, emergir do colonialismo seria reinventar o mundo por meio dos encantamentos. Propõe a elaboração de uma nova construção de conhecimento por meio dos cruzos, das amarrações, das culturas de síncope e das frestas.
Rufino define os cruzos como uma ferramenta de encanto dos saberes, sendo este um conjunto de conhecimentos que não passam pela experiência de morte – por meio do colonialismo – e por isso se define encantado. As amarrações são como a epistemologia das macumbas, aquela que correlaciona e efetivamente amarra os saberes presentes nas encruzilhadas, que possuem necessariamente origens diferentes do conhecimento canônico, aquele que se coloca em supremacia.
O cruzamento de caminhos é um elemento muito presente nos ensaios, questionam a existência das ciências humanas para a elaboração das ciências encantadas com o intuito de incluir a experiência como uma forma poderosa de saber, visto que, o corpo que tudo dá – Exu – não dissocia palavra, corpo e pensamento, propõe a inclusão mas também a integralidade do ser, do corpo que encontra no Novo Mundo a necessidade de reinvenção da vida para poder existir. De acordo com os autores, a experiência do desterro perturba a mecânica cultural e histórica do pertencimento. Luiz Rufino e Luiz Antonio Simas propõem, de forma assertiva, a presença do terreiro como lugar de cruzamento de saberes, além da criação da compreensão cultural e identitária de cada indivíduo por meio, por exemplo, do que os autores chamam da pedagogia dos tambores, que são capazes de promover a síncope e transcender os ensinamentos da palavra.
Finalizei a leitura de Fogo no mato com o mesmo princípio do inacabamento que os autores relacionam com Exu. Sem certezas, mas ciente do processo de dilatação de uma nova percepção de mundo pois a leitura do livro, bem como as encruzilhadas que exigem metabolismo. Exu, como a boca que tudo come, regurgita de maneira diferente, modifica o que foi engolido para ser devolvido. A leitura de Fogo no mato exige ritual semelhante, pois é um livro que exige tempo para que o imaginário possa lidar com a dimensão de detalhes e saberes impressos na prática do chão do ilê trazidos para obra, mas é uma leitura necessária, urgente e transformadora.
A obra me parece urgente no contexto atual, visto que pensar em produção científica já desloca o imaginário para a academia, que é centrada por lógicas embranquecidas e patriarcais. Pensar a respeito das frestas proposta pelos autores me soa como uma possibilidade enfeitiçada de pensar um mundo que emerja do estado de terror causado pelo colonialismo, mas sem colocar o colonizador no foco da cena e sim as possibilidades de existência em um mundo que não estremeça nossos laços culturais e ancestrais. Pensar na frestas, depois da leitura, me coloca como detentora de sonhos e sujeita da elaboração deles individualmente como forma de impactar o coletivo.