Gênero, Performatividade, Performance e Desejo: Sexualidade no cinema mudo

Texto por vvilliam/lenny

 

Aviso: essa crítica é composta por pequenas divagações acerca de algumas cenas-chave de um curta-metragem mudo (e não o cinema mudo como um todo). Sabemos, afinal, quão complexa a sexualidade é, portanto, em nenhum momento o texto abaixo deve ser entendido como uma regra universal.

 

 

“[…] a que preço o sujeito pode dizer a verdade sobre si mesmo […]?” – Michel Foucault

 

“I Don’t Want to be a Man” é uma comédia muda alemã de 1918 sobre uma adolescente (Ossi), que, completamente tomboy e fora dos padrões conservadores da época, desiste de tentar adequar-se ao papel frágil e submisso que as mulheres precisavam obedecer, resolve se vestir de homem e passa a curtir a vida noturna da cidade durante os 45 minutos de duração (Lubitsch estrearia na direção em longas meses mais tarde, com “Die Augen der Mumie Ma”, 1918).

 

Enquanto performa sua masculinidade recém-adquirida, Ossi passa a perceber como sua vida fica mais fácil devido ao privilégio de ser lida como homem, mas ao mesmo tempo tem dificuldade em se esquivar das constantes investidas das sedentas mulheres alemãs. Lubitsch obviamente nos diverte, e se diverte ao mostrar-se infinitamente à frente de seu tempo ao subverter expectativas de gênero e orientação sexual que hoje são consideradas arcaicas, mas que em 1918 eram tópicos completamente impensáveis, pelo menos não tão abertamente.

 

                 

Lubitsch sempre foi conhecido por seus filmes cheios de sexualidade, sensualidade e inversão de expectativas de gênero, e isso bem antes de sua fase hollywoodiana nos anos 30. Podemos notar a influência do humor shakesperiano, que 300 anos antes (O Mercador de Veneza, Dois Cavalheiros de Verona, Do jeito que você gosta) já era famoso por usar e abusar da troca de identidade e o crossdressing a favor do humor e confusão que isso causará nos casais apaixonados mais adiante na peça. Em uma cena engraçadíssima durante um baile, Ossi é disputada por 7 mulheres obviamente sedentas pelo garoto que ela havia se tornado. Finalmente ao ver-se livre das predadoras (elas são claramente mais velhas e a chamam de “Junior”), Ossi exclama: “Pessoas cruéis, essas mulheres!”.

Mais adiante, ela nota estar ao lado de seu instrutor de etiqueta, que no começo do filme é contratado para transformá-la em uma dama, e assim conseguir um marido. O instrutor, arrogante, a ignora chamando de “pirralho” e sai com sua acompanhante para um drinque. Ossi, por sua vez, vocifera: “Vou seduzi-la em tempo recorde!”. E para surpresa de absolutamente ninguém, ela assim o faz.

A cena mais emblemática e à frente de sua época se passa minutos mais tarde. O instrutor, no final das contas, teve sua acompanhante roubada por outro homem. Quando, no meio de uma bebedeira, ele e Ossi resolvem entrelaçar os braços e brindar suas taças para curar suas mágoas. O que acontece a seguir é de uma sensualidade ao mesmo tempo anacrônica e necessária: braços confusos se cruzam, rostos desajeitados se aproximam, um olhar acontece, eles hesitam por meio segundo e se beijam.

O que acontece na cena descrita acima possui várias nuances e possíveis leituras. O diretor sabia que para o público da época aquela relação era vista como aceitável, uma vez que a princípio sabemos que o casal é heteronormativo (ou pelo menos lido como tal pela sociedade), ou seja: formado por uma mulher e um homem heterossexual. Mas para os personagens, mais precisamente o instrutor, trata-se claramente de a) um desejo homossexual latente adormecido, b) talvez sua real orientação sexual, c) uma possível bissexualidade (uma vez que ele não faz ideia de que Junior é, na verdade, sua aluna Ossi, que por sua vez já nutria algum sentimento por ele desde o começo do filme). E ele, é claro, sentiu-se atraído por ambas as versões apresentadas por Ossi: a menina tomboy e selvagem (e isso merece uma segunda resenha focada somente no quão questionável é essa relação, afinal de contas ele é um professor mais velho, apaixonado por sua aluna), e Junior, a versão crossdresser construída por Ossi para viver livre e abusar dos direitos que as mulheres não possuíam na época.

 

É uma cena curta, porém repleta de uma poesia libertadora, pois o instrutor se sente vulnerável o bastante a ponto de deixar que aquele sentimento considerado anormal seja colocado para fora após um momento de mágoa (por ter perdido sua companheira da noite para outro homem), e finalmente encontra a coragem que faltava para se entregar sem culpa aos lábios de outro homem, mesmo que por alguns minutos, já que para o filme ser aceito pela sociedade, o casal precisa voltar a ser heteronormativo.

 

Eventualmente Ossi abraça sua versão feminina, ainda que recuse o papel submisso, chegando inclusive a obrigar seu amado a ajoelhar-se aos seus pés, o colocando em um nível abaixo do seu, demonstrando quem é que manda naquela relação.

Para quem quiser assistir, o filme encontra-se completamente restaurado no Youtube com legendas em inglês.

9 respostas

  1. Que reflexão instensa!
    Eu nunca parei pra assistir filmes mudos, eu assisti muitos deles pra fzer análise na faculdade, mas depois disso nunca mais.
    Achei sensacional a história da menina se vestir de homem pra ter os privilégios masculinos, quando eu era mais nova, eu queria fazer isso também só pra poder baijar meninas. Adorei as reflexões que você trouxe, agora eu quero mesmo assistir esse filme, socorro!!

  2. Oi, Bianca, tudo bem? Obrigado pelo comentário.
    O filme está completo no youtube, e é bem curtinho.
    São apenas 45 minutos. Espero que goste.

  3. Poxa vida, que post mais maravilhoso! Eu não conhecia o curta mas só de ler um pouquinho aqui, já fiquei bastante interessada, principalmente por dar a possibilidade para tantas divagações a respeito de assuntos tão necessários. Adorei!

  4. Acredita que eu não conhecia esse filme? Já assisti filme mudo para a época da faculdade, mas esse é novidade para mim. E quantas reflexões esse enredo pode passar, né? Eu fiquei realmente curiosa para conhecer e sua impressão me despertou muito interesse.

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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