A acidez e a ironia de Hilton Als em “Garotas brancas”

Hilton Als é uma figura bastante singular. Autor premiado — tendo vencido o Pulitzer, inclusive —, é professor universitário e crítico de arte. Seus trabalhos aparecem em veículos como a New Yorker, The Nation, The Believer, New York Reviews of Books dentre outros, criando para si uma imagem de intelectual articulado e atento aos detalhes, características que podemos encontrar nos ensaios de Garotas brancas (Fósforo, tradução de Marilene Felinto), nos quais a ironia e acidez de sua escrita são elementos fundamentais. 

Vagando por tópicos bem particulares ou por interesses muito próprios, Hilton Als consegue nos cativar. Ousado, o autor é habilidoso ao esmiuçar os assuntos mais diversos. E seus argumentos são bem instigantes. Mesmo quando as suas opiniões ou abordagens são controversas, Als tem a manha de nos fazer querer ficar rente ao seu texto — até mesmo nos momentos em que se alonga demais, nos cansando um pouco.

No primeiro ensaio de Garotas brancas, “Tristes tropiques”, Hilton Als narra uma parte importante de sua vida, já revelando seus dotes como escritor. Ele põe no centro do palco o seu relacionamento com o homem que chama de Senhor ou Lady —  ou simplesmente SL —, nos deixando por vezes confusos com a natureza da relação, mesmo que tente deixar claro que não, não são amantes. Um conviver complexo e conflituoso, de muitas voltas, mas presente, constante e grandioso. No mesmo ensaio, Als também nos conta de outra amizade de mesmo poder, a que tem com a mulher que chama de sra. Vreeland. Segundo o autor, um dos seus primeiros “eus”, pessoa presente em boa parte de sua vida, sendo seu lar, sua árvore, conforme nos conta. Tal relato biográfico acaba por funcionar como uma espécie de preparação para os ensaios por vir. Ao conhecermos um pouco de sua intimidade, das suas relações e da maneira como Als lida com o mundo, a perspectiva única de seus argumentos ao longo de todo livro faz mais sentido. 

Vemos um pouco da qualidade provocadora de sua escrita em ensaios como “As mulheres”, no qual Als defende a tese de que Truman Capote se tornou uma mulher. O que começa pela fotografia do autor na sobrecapa de seu primeiro romance, Other Voices, Other Rooms. Capote ter se tornado mulher teria sido um fato que ofuscou outras autoras, visto a sua falta de vontade em dividir o “palco feminino”. Tal ensaio é uma reflexão minuciosa e original a respeito desse autor “inconfundivelmente norte-americano”. 

Outro exemplo dessa característica está em “Filósofo ou cachorro”, no qual Hilton Als discorre a respeito dos escritores negros que em nome da alteridade e diferença, se tornam dóceis. E o fazem por tornarem seus trabalhos confortáveis e palatáveis para a sua audiência. E na ânsia por aprovação de pessoas a quem Als julga muito burras, tais autores perdem a própria voz. Dessa forma, ganham apoio por não ameaçarem o mundo de privilégio delas. Escrevem para elas, não contra elas. Nesse mesmo ensaio, Als tece críticas polêmicas — e por que não corajosas — a respeito de Malcolm X. Ele não está nem aí. 

Garotas brancas é fruto de uma criatura inquieta e destemida que não hesita em se expor. E nessa, vai do céu ao inferno com facilidade — vide o ótimo perfil a respeito de Richard Pryor em “Um amor para Richard Pryor” que se segue por uma prolixa fabulação em torno de uma hipotética irmã do ator em “Você e o exército de quem?”, no qual um cheirinho de misoginia parece exalar de suas palavras. Contudo, a audácia de Hilton Als é admirável. Alguém que subverte o que se espera de um autor negro, entregando o que quer e não o que supostamente deveria. E isso é maravilhoso, afinal a subjetividade negra não é finita e Als é prova de que não há nada que a cerceie e a obrigue. 

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Maria Ferreira

Maria Ferreira é uma mulher negra baiana. É criadora do Clube Impressões, o clube de leitura de livros de ficção do Impressões de Maria, e co-criadora e curadora do Clube Leituras Decoloniais, voltado para a leitura e compartilhamento de reflexões sobre decolonialidade. Também escreve poemas e tem um conto publicado no livro “Vozes Negras” (2019). É formada em Letras-Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão relacionados com temas que envolvem literatura, feminismo negro e decolonial e discussões sobre raça e gênero. Enxerga a literatura como uma ferramenta essencial para transformar o mundo. 

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